Os comunistas brasileiros devem incorporar o legado de Luiz Carlos Prestes
Por: Giovanny Simon
Nenhuma grande revolução da história partiu de ideologias puramente exógenas às suas realidades nacionais. Todas elas, em algum nível, formularam suas próprias versões das grandes ideologias para dar respostas aos problemas concretos das suas nações. A ideologia, como veículo de autoesclarecimento para a resolução de conflitos sociais entre classes e seus segmentos, é “traduzida” para a língua nativa, para os costumes de um povo e para enfrentar as suas questões mais urgentes.
Nesse processo, os líderes revolucionários do passado de cada nação sempre serviram como baliza para que a tradução não fosse forçada, literal. Além de servirem como símbolos poderosos que em muitos casos estavam vivos nas memórias de luta dos povos, suas contribuições teórico-políticas foram recuperadas e integradas na visão de mundo dos revolucionários dos seus tempos.
Pense, por exemplo, no papel cumprido pelos revolucionários russos Tchernishevski e Herzen, frequentemente elogiados por Lenin e como suas posições revolucionárias e utópicas foram positivamente superadas e incorporadas pelos bolcheviques. Os dois eram de apenas uma geração anterior e correspondiam ainda a uma época da vida política russa em que o movimento operário ainda não tinha o mesmo grau de desenvolvimento se comparado ao período posterior. Ainda que tenham até se relacionado com Marx e Engels em suas épocas, Herzen e Tchernishervski não foram marxistas, mas eram democratas-radicais mais próximos de um socialismo utópico.
O que dizer então da revolução cubana e sua recuperação do “apóstolo” da independência José Martí? Apesar de lutar e morrer pela independência de Cuba contra a Espanha, Martí já identificava a grande ameaça que os EUA representavam para a independência da América Latina. Fidel e o M-26 incorporaram praticamente o legado de Martí ao marxismo numa revolução que começou anti-imperialista e se converteu rapidamente ao socialismo. Nesse sentido, a revolução bolivariana na Venezuela também encontrou em Bolívar uma base sólida para fundamentar suas posições anti-imperialistas, ainda que seu horizonte socialista continue pouco claro.
Naturalmente, estudos mais aprofundados quanto a esses casos poderiam ser feitos para entender como o legado de revolucionários democrata-radicais cotejou a estratégia dessas revoluções e como seus subsídios se relacionaram com o marxismo.
A influência de Farabundo Martí na revolução salvadorenha talvez seja um exemplo de uma inspiração já marxista em seu princípio. A FMLN, com base na sua herança, impulsionou a revolução anti-imperialista por meio de uma estratégia socialista.
Os revolucionários brasileiros herdaram um processo de independência desligado do abolicionismo, justamente por ter sido hegemonizado pelas elites escravistas que relegou o papel cumprido por importantes democratas-radicais ao segundo plano. Ainda temos muito o que recuperar de nossas heranças do passado que, apesar de não terem sido capazes de constituir um movimento nacional, são marcos incontornáveis do patrimônio cultural e político da vindoura revolução brasileira.
Temos o privilégio, porém, de absorver o legado de Luiz Carlos Prestes – o mais importante dirigente comunista brasileiro. Prestes, diferente da maioria dos comunistas, já era um revolucionário antes de conhecer o marxismo, já era o Cavaleiro da Esperança e liderança inconteste do tenentismo. O marxismo deu sentido estratégico à sua essência revolucionária e o converteu de democrata radical do tenentismo a comunista. Essa trajetória singular na América Latina (e, quiçá, no mundo) que foi ressaltado por Florestan Fernandes, é subvalorizado pelos comunistas brasileiros.
Hoje, 03 de janeiro de 2023, data que marca os 125 anos do Cavaleiro da Esperança, cabe apontar mais uma vez, até que se cumpra, a importância de os comunistas brasileiros recuperarem o legado de Luiz Carlos Prestes. Considero que essa recuperação envolve quatro eixos principais indissociáveis: um estratégico; o organizativo; um teórico e outro simbólico.
Muitos partidos comunistas no Brasil usam e abusam da figura de Prestes para pegar emprestado o seu prestígio e buscar legitimarem-se como “o verdadeiro Partido Comunista”. Para isso esquecem ou até recalcam as críticas que Prestes fez nominal ou indiretamente aos seus agrupamentos partidários, desprezam ou distorcem todas as outras dimensões do seu legado. A recuperação simbólica de Prestes por parte de certos comunistas pouco contribui com os rumos do movimento comunista, que já devia saber o perigo de se erguerem monumentos ocos.
Costumeiramente, a recuperação simbólica dissociada dos eixos teórico-organizativo e estratégico esquece o período de maior maturidade de Prestes. “O Velho”, dirigente político octogenário, realizou uma autocrítica profunda em seu rompimento com o PCB em 1980. Nas palavras de Florestan:
“Ao contrário de outros ‘comunistas’ que renegaram e traíram seus compromissos e valores, ele procurou atualizar sua compreensão objetiva do Brasil, seu conhecimento do marxismo e sua atuação independente dentro do movimento operário e sindical. Algo surpreendente para uma pessoa de sua idade, além do mais tida como ‘dogmática’ e ‘autoritária’.”
É na autocrítica de Prestes e na sua batalha por um partido revolucionário de novo tipo orientado por uma estratégia de revolução socialista que reside o seu maior legado que precisa ser recuperado e celebrado. Seu estudo da realidade brasileira levou-o a compreender o caráter dependente do capitalismo brasileiro e a impossibilidade de uma aliança com uma inexistente burguesia nacional, orientação que marcou a política do PCB durante toda a sua existência e levou-o a tragédia final.
Tentam enquadrar Prestes em seus “patriotismos partidários”. Tentam divorciar Olga Benário Prestes dele, inclusive omitindo seu último sobrenome. Louvam-se mártires que, apesar da bravura, preferiram intempestivamente pegar em armas do que corrigir a estratégia.
O Velho cruzou o Brasil e de norte a sul e de leste a oeste no último decênio de sua vida, convencido que um partido revolucionário só seria possível com um núcleo de dirigentes coesos e com domínio teórico do marxismo, orientados por uma estratégia de revolução socialista. Aonde ia e com quem quisesse ouvi-lo, dialogava francamente defendendo seu ponto de vista sem segundas intenções.
O Velho que muitos comunistas brasileiros querem esquecer, para continuarem seus expedientes oportunistas, continua mais novo do que nunca. Sua contribuição teórica, política e seu exemplo moral devem ser a base principal para fundar no Brasil um partido revolucionário. Essa tarefa fundamental não é possível enquanto se secundarizar o seu legado.
Que privilégio é ser brasileiro! Que privilégio é ser compatriota de Luiz Carlos Prestes!
Florianópolis, janeiro de 2023.