Funk não é crime, Mc não é bandido!
Por Luca Pilotto e Mero MC, militantes da Juventude Comunista Avançando
Pouco menos de um mês depois da detenção ilegal e violenta do MC Salvador da Rima (documentada em vídeo) pela PM de São Paulo, no bairro do Itaim Paulista, Zona Leste da capital, no último dia 25 de março estourou uma nova “mega operação” da Polícia Civil. Na detenção do Salvador da Rima ficou evidente a intenção dos policiais de forjar agressões em seus corpos para justificar a violência usada contra o MC.
Agora, a “mega operação” acusa diversos MCs, como Mc Ryan SP, Mc Brinquedo, Salvador da Rima, Léo da Baixada e Mc Pedrinho, de associação ao tráfico e financiamento com dinheiro oriundo de atividades criminosas. Léo da Baixada postou nas suas redes um relato do modus operandi truculento da polícia de São Paulo: “às 5 horas da manhã, a Polícia Civil arrombou a porta do meu apartamento, onde moram comigo meus filhos pequenos (uma delas autista), minha esposa e meus pais, e reviraram tudo”.
O que se vende e espetaculariza como uma “mega operação de guerra às drogas” é, na verdade, a guerra permanente e antiga contra a cultura do povo negro e periférico, entre outras coisas, constituída pela criminalização dos movimentos culturais da periferia. A repressão às manifestações culturais que contribuíram com a manutenção da identidade dos povos africanos sequestrados e escravizados e, posteriormente, a formação de uma identidade própria dos negros escravizados ou recém libertos, foi um processo que teve início no período de escravismo colonial e hoje persiste por meio da violência sistemática aplicada ao povo negro e periférico pelo Estado autocrático brasileiro e seus braços armados.
Desde a consolidação do capitalismo em nosso país, a burguesia sempre buscou escolher a dedo os artistas que poderiam ter sucesso e os que não poderiam, usando todos os mecanismos possíveis para impedir a projeção dos que propagavam qualquer coisa contra a ordem burguesa ou que reconheciam a realidade e a luta da classe trabalhadora no Brasil. Não falamos nem somente de artistas comunistas e revolucionários que promoviam/promovem agitação e propaganda comunista em suas músicas, mas todos aqueles que fazem referência à luta cotidiana pela sobrevivência e contra a opressão que o povo enfrenta todo dia.
Os casos de prisões ilegais e racistas que ficaram famosas, como de Renan da Penha, Salvador da Rima, Racionais e RMN são algumas das milhares de tentativas de atribuir à cultura das periferias a pecha de “vulgar”, “discurso de ódio”, “desacato”, “promoção à violência”, “apologia ao tráfico” e etc, que aconteceram nos últimos anos. Em 2019, só no estado de São Paulo, foram feitas mais de 7500 operações sob as mesmas orientações que resultaram no massacre de Paraisópolis durante o baile da DZ7, totalizando mais 1250 pessoas presas no ano. Até durante a pandemia estas operações seguem, e em alguns casos buscam também vincular aos MCs, não só as acusações tradicionais, mas também a responsabilidade pela quebra do isolamento social (enquanto milhares de patrões obrigam milhões de brasileiros a quebrar o isolamento todos os dias).
No pedido de prisão do MC Poze do Rodo, feito no começo deste mês, no Rio de Janeiro consta tal justificativa:
“expuseram crianças, adolescentes e adultos que moram nessas regiões e promoveram aglomerações, possibilitando risco de disseminação da Covid-19 e, consequentemente, aumento do contágio e do número de infectados” (…) “A investigação apontou que os bailes foram realizados em áreas abertas nas comunidades sob controle de grupos criminosos dessas regiões. Segundo os agentes, os eventos fizeram, por meio das músicas, apologia ao crime ou a criminosos, sendo também o sexo, a violência, o tráfico e o uso de drogas temas recorrentes das letras”
Mas, quantas festas e aglomerações das elites, inclusive com a constante utilização de drogas, foram reprimidas com balas de borracha e os DJs tiveram a prisão pedida pelo Estado?
O que hoje em dia se chama de “necropolítica” e que está evidente com essa nova operação, é algo que muitos artistas e lideranças comunitárias denunciam há décadas, e é fruto de uma necessidade permanente do capitalismo brasileiro garantir a desarticulação do povo que mais sofre com a exploração e condição de miséria imposta à nós. É a expressão mais permanente e violenta da face mais conservadora e ultrarreacionária de um Estado que pouco tem de democrático e muito de ditatorial. Se na Constituição de 1988 (e mesmo com seus sucessivos desmontes desde sua promulgação) constam a igualdade formal e direitos básicos, nela também constam os instrumentos que garantem o descumprimento real do que está escrito no papel.
Para os negros de nosso país as leis e regras que traziam direitos ou melhores condições nunca se aplicaram, a única coisa que se aplica são os intrumentos de repressão dessas leis. Com o fim da escravidão foi concedida a liberdade “formal” a todos os sujeitos, junto com ela, a “liberdade” capitalista de escolher por quem seriam explorados. Ao invés de permitir a inserção dos negros no mercado de trabalho, promoveu-se uma intensa política de embranquecimento e importação de mão de obra europeia, garantindo concretamente (e não formalmente) que os negros fossem postos à margem da “nova sociedade” que nascia.
Além desse, existem milhares de outros exemplos que atestam as profundas discrepâncias entre o que formalmente existe, e o que os negros de nosso país vivem. Mas nada é mais atual que as bonitas palavras presentes em nossa constituição sobre inviolabilidade do domicílio, as leis que regem investigações e abordagens nas operações policiais e a nova decisão do STF que proíbe as operações nas favelas durante a pandemia. Quem mora ou frequenta qualquer periferia do Brasil sabe que nada disso sai do papel, ou é aplicado (ainda que condicionado à conjuntura) apenas para as camadas médias e majoritariamente brancas.
A política concreta para os negros e as periferias das grandes cidades escancara elementos que existem independente de governos mais ou menos progressistas. São elementos provenientes da formação social brasileira e das características fascistas presentes no Estado brasileiro, consolidadas e aprimoradas com a reciclagem da ditadura civil-militar brasileira na constituição de 1988. É uma política de guerra aberta com amplo encarceramento e genocídio permanente para impedir qualquer organização ou avanço de consciência.
E os MCs que são alvo de mais um capítulo de criminalização da cultura negra e da periferia fazem justamente isso em suas músicas: denunciam a opressão, relatam as condições de vida do povo pobre e trabalhador e fortalecem o sentimento de pertencimento e identidade da periferia, enquanto lutam para que essa identidade se torne consciência organizada para melhorar as condições de vida do povo pobre, preto e periférico.
A organização de todos os setores explorados e oprimidos depende também da possibilidade da sua identificação enquanto tal. Criminalizar o funk e o rap é mais uma ação violenta dos de cima, nessa guerra suja, injusta e permanente contra os de baixo.
Abaixo à criminalização da cultura negra e da periferia!