Um belo livro sobre o campesinato brasileiro

Um belo livro sobre o campesinato brasileiro

Por: Paulo Pinheiro Machado

Há obras que vem para ficar. Certamente é o caso de “Torto Arado”, um belo livro de Itamar Vieira Júnior. Neste romance histórico temos traços fundamentais da alma do povo brasileiro. A história se passa em uma fazenda no sertão da Bahia, região da Chapada Diamantina. A narrativa é montada através da história de duas irmãs muito próximas, Belonísia e Bibiana, que cimentam uma relação de vida compartilhada depois de um acontecimento traumático na infância. Elas são de uma família de trabalhadores rurais, moradores de um latifúndio – a fazenda Água Negra, na qual o dono e sua família quase nunca aparecem. Ali vive uma comunidade de trabalhadores que alterna o trabalho para o latifúndio e as roças e cuidados com seus quintais de subsistência. São descendentes de escravizados que vivem uma experiência muito próxima ao cativeiro. Trabalham em troca do precário direito à moradia, quase não vendo a cor do dinheiro.

Os espaços domésticos nem sempre eram respeitados. Nas épocas de seca até os produtos dos quintais familiares eram tomados pelo capataz da fazenda. Os moradores tinham um compromisso oral com o patrão que permitia a existência das roças familiares e construção de casas, mas proibidas as de alvenaria, eram feitas de pau-a-pique e barro, com telhados de palha. A precariedade era a marca da existência. A comunidade da fazenda reconhece no pai das meninas, Zeca Chapéu Grande, uma liderança espiritual importante. Zeca animava as brincadeiras de Jarê, que são momentos importantes na vida da comunidade. Com essas brincadeiras se comunicam com os espíritos encantados, com manifestações do além que possuem uma relação íntima com os vivos. Não se trata de um “realismo fantástico”. Aqui a literatura imita a vida. Zeca Chapéu Grande tinha a capacidade de incorporar os encantados e tratar de todos os tipos de doenças. A comunidade possuía benzedeiras, milagreiros e conhecedores de propriedades de ervas vivem num mundo onde a espiritualidade e a saúde caminhavam juntas. É uma particular associação de práticas religiosas africanas e indígenas encontradas no interior (e muitas vezes nas capitais) de todo o Brasil, descritas com uma naturalidade de quem já viveu neste universo.

Os anos se passam e mudam os trabalhadores (e os patrões). Morre o antigo proprietário e a fazenda passa por mudanças profundas na administração, iniciando com a proibição de novos sepultamentos. Na experiência dos trabalhadores rurais brasileiros o direito à sepultura não é algo secundário. Os processos de despejo de famílias de moradores começam com a proibição de sepultamento. Ser sepultando no chão onde se trabalhou e arrancou seu sustento, onde viveram seus ancestrais, onde foram enterrados os umbigos de seus filhos e netos, é uma espécie de direito sagrado da comunidade. Não é por acaso que as primeiras associações de lavradores, chamadas de “Ligas Camponesas”, tinham como pauta inicial não só a resistência aos despejos, diminuição do pagamento dos foros, mas o direito a sepultar seus mortos, tal como aparece no documentário “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho. O destino ao corpo no fim da vida representa a dignidade para este indivíduo e seus familiares.

Isso tudo ajuda a explicar a continuidade e a permanente relevância da luta pela terra no Brasil. Trata-se não só de um imperativo de justiça, mas uma necessidade elementar de qualquer sociedade que se pretenda minimamente democrática. A grande propriedade fundiária é um dos fatores fundamentais para a reprodução dos laços de opressão, miséria e clientelismo, a perpetuação da precariedade de vida entre as populações rurais e em boa parte da população urbana que se abrigou nas favelas. A modernização do latifúndio, que hoje porta o nome elegante de agronegócio, que aparece na parte final do romance, demonstra a cruel relação de despejo e violência que vemos atualmente em todas as unidades da Federação.

O livro possui várias dimensões na descrição da vida dos camponeses negros. Há uma dimensão histórica, com as gerações se sucedendo na terra de Água Negra, desde a época da mineração dos diamantes até a atualidade, mostrando suas relações, conflitos e lutas por sobrevivência. Há uma dimensão dramática e trágica, vivida pelos diferentes personagens que são apresentados, que se renovam a cada geração, com conflitos familiares, histórias de amizades e amores, de solidão e de relações que se desfazem. Há uma dimensão do conhecimento ambiental, aparecendo com a pesca nos rios da região, a coleta do dendê e a arte agricultura passada dos pais aos filhos. Há uma dimensão feminina, presente nos relatos e no protagonismo de Salustiana, das meninas e de outras mulheres, inclusive das encantadas, que não são exatamente sobrenaturais, mas formas de conhecimento, antigas experiências, personagens portadoras de consciência histórica de lutas. Além de Belonísia e Bibiana, o livro possui outra narradora, uma encantada, que mostra diferentes aspectos das vidas desta comunidade e partes decisivas do desfecho final. A obra é muito bem escrita e ambientada. Quase sentimos os cheiros das ervas do jardim de Zeca Chapéu Grande, da batata doce no café da manhã, do transporte de dendê para a cidade, para obter uma pequena renda. Há luta e esperança, há uma nova geração de agricultores que conhece as cidades, a política e os sindicatos. Há conflitos entre evangélicos e os moradores da fazenda.  Há a vida de professora rural e as condições das escolas do interior. Há os pistoleiros em ação. Milhares de fazendas, como Água Negra, existem no presente.

O autor é geógrafo e funcionário do INCRA, com Doutorado pela Universidade Federal da Bahia. O livro recebeu o Prêmio Leya, em Portugal e o Prêmio Jabuti, de melhor romance literário, foi lançado em 2018 e já se encontra na terceira reimpressão. Desconfio que a maioria dos conhecimentos e experiências descritas não provém tanto de sua formação acadêmica, mas muito mais por experiências de vida e trabalho. Em todas estas dimensões do livro, algo em comum reúne a narrativa: o desafio da comunicação entre as pessoas, principalmente da comunicação entre iguais. A história das duas irmãs – que se interpretam e se adivinham – não deixa de ser uma metáfora das necessidades dos trabalhadores. Por diferentes razões, há os que não possuem voz, mas que se fazem ouvir por atitudes frente à vida e ao mundo. Um livro de alta qualidade!

Título do Livro: Torto Arado

Autor: Itamar Vieira Junior

Editora: Todavia, São Paulo.

Ano de publicação: 2018

262 páginas.

Um comentário em “Um belo livro sobre o campesinato brasileiro

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *