Cultura em chamas: outra face do projeto fascista para o Brasil
Por Lícia Brancher
A sede da Cinemateca Brasileira está localizada nos edifícios do antigo Matadouro da Vila Clementino, na cidade de São Paulo, construído no final do século 19 e tombado pelos patrimônios histórico e cultural do estado e do município. O abandono da instituição pelo governo federal, não obstante as denúncias de seu dedicado corpo técnico, é atualmente um dos símbolos mais emblemáticos da falta de política cultural e do absoluto descaso do poder público com o nosso patrimônio e a memória audiovisual e cultural do país. Funcionários, entidades e trabalhadores do cinema, das artes, das humanidades e da cultura clamam pela Cinemateca, a maior da América do Sul e uma das principais instituições de memória da América Latina. Além do acervo fílmico, fotográfico, documental e da biblioteca, possui um parque tecnológico sofisticado de restauração fílmica.
A Cinemateca abriga 45 mil obras cinematográficas produzidas ao longo de 120 anos, dentre as quais os filmes da Atlântida, da Vera Cruz, as grandes companhias cinematográficas brasileiras das décadas de 1940 e 1950; as obras do Cinema Novo dos anos 1960 e 1970; partidas de futebol do Canal 100 e o acervo jornalístico da TV Tupi, a primeira emissora de televisão do Brasil. São 250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos que conservam as memórias do cinema e do audiovisual brasileiros, como roteiros, cartazes, textos, desenhos, fotos, livros, cartas e outros documentos. Registro precioso da história, tal acervo tem valor imensurável e nos permite conhecer o Brasil das primeiras décadas do século 20 até hoje. Além de guardar, preservar e garantir o acesso futuro a todos esses materiais já produzidos, é na Cinemateca Brasileira que é feito o depósito legal de todas as obras audiovisuais realizadas com recursos públicos federais. O depósito consiste na entrega compulsória para salvaguarda e conservação dessas obras que passam a constituir o patrimônio audiovisual da União.
Sem a manutenção adequada, em 29 de julho de 2021 um incêndio atingiu o galpão da unidade da Vila Leopoldina, resultando na possível perda de quatro toneladas de materiais. No primeiro inventário feito pelos trabalhadores da instituição, estimou-se que foram perdidos ou afetados grande parte dos arquivos de órgãos extintos do audiovisual, Embrafilme – Empresa Brasileira de Filmes S.A. (1969 – 1990), Instituto Nacional do Cinema – INC (1966 – 1975) e Concine – Conselho Nacional de Cinema (1976 – 1990); bem como equipamentos de cinema, fotografia e processamento laboratorial, além de matrizes e cópias de filmes e cinejornais.
Há um ano, em 7 de agosto de 2020, o governo federal demitiu todo o corpo técnico e tomou as chaves da Cinemateca, passando a ter sob sua tutela o espaço, os equipamentos e o acervo da instituição. Prestes a completar 75 anos neste 2021 e subordinada à Secretaria Especial de Cultura – esta última ligada ao Ministério do Turismo após vir da pasta da Cidadania, onde estava desde a extinção do Ministério da Cultura em 2019 – a Cinemateca encontra-se sem administração, e o mais grave, sem técnicos contratados. Numa coincidência perversa, no dia seguinte ao incêndio o governo publicou o edital para contratação da Organização Social (OS) que deverá geri-la, sem anunciar nenhum plano emergencial – o que é alarmante haja vista que na administração pública a tramitação de um processo de contratação dessa envergadura costuma se estender por longos meses. O contrato de gestão prevê um repasse de 10 milhões anuais, o que está aquém das necessidades da instituição, que ainda deverá captar outros 4 milhões no mercado. Em 2013, o repasse anual era de 20 milhões anuais.
O incêndio que destruiu o galpão da Vila Leopoldina não foi um acidente, mas a consequência do abandono e do descaso. Foi engendrado desde o momento em que o governo federal afastou os profissionais de suas funções, pois uma instituição como essa não sobrevive sem técnicos especializados, não se preserva acervos sem trabalhadores. Cabe destacar que grande parte do material é altamente inflamável; até a década de 1940 no Brasil os filmes produzidos eram feitos de nitrato de celulose, e há meses os trabalhadores afastados vinham denunciando o risco iminente de incêndio, como o ocorrido em 2016. Além disso, a conservação dos filmes depende também de um controle rigoroso de temperatura e umidade. Em 2020, a Cinemateca não recebeu recursos para a sua manutenção. Esteve sem pagar os salários dos técnicos e funcionários, as contas de água, energia, segurança e manutenção.
Esta é mais uma de tantas ações de aniquilamento, não apenas da cultura ou do cinema, mas daquilo que nos permite reforçar a coesão e identificação do povo com seus símbolos e sua história. O que vivemos hoje é um projeto de apagamento e destruição obscurantista que vai seguir adiante e nos atropelar se não nos organizarmos para impedir, denunciar e vencer o fascismo. Com o apoio da sociedade, o judiciário e o Congresso Nacional precisam garantir a existência da Cinemateca e fazer frente a esse projeto de desmonte que atinge o desenvolvimento do país. Ainda que o desapreço pela cultura, pelas artes e pela ciência seja uma das marcas desse projeto, precisamos manter viva a chama da resistência e da esperança, como escreveu a atriz Fernanda Montenegro,
“(…), mas vamos renascer, tenho certeza, nós temos certeza, das cinzas vamos renascer. É sagrado o eterno retorno (…). Um país não existe sem cultura ligada às artes.”