A esperança equilibrista: sem anistia para os fascistas!
Texto de opinião por Cecília Brancher
A bandeira da anistia no Brasil carrega significados histórico-políticos dos mais profundos. Quando pensamos nessa palavra, talvez uma das primeiras coisas que vem à mente seja a ditadura militar. Como tantas outras bandeiras que fizeram parte das lutas políticas dos movimentos populares, a anistia no Brasil teve seu sentido retorcido, esgarçado até um limite que atinge o intolerável. A lei de 1979, considerada como o marco do início da distensão “lenta, gradual e segura” da ditadura, anistiou os presos políticos mas também os seus algozes. Torturadores e assassinos impunes para que a transição garantisse a tutela das Forças Armadas sobre o Estado e seus poderes constitucionais. Encastelado em seus quartéis com teto de vidro, e envolto em um falso manto de patriotismo vira-lata, o poder militar jamais abdicou da concepção de que é o “verdadeiro” fundador da República, anterior e superior ao Estado e o responsável legítimo pela manutenção da ordem interna. Em outras palavras, o baluarte do Estado autocrático burguês.
Quem saiu às ruas no dia 9 de janeiro deve ter ouvido inúmeras vezes a palavra de ordem “SEM ANISTIA”. Metaforicamente podemos dizer que há uma espécie de pacto histórico e longínquo entre as classes dominantes do nosso país que consiste em anistiar/perdoar aqueles que cometeram crimes contra o povo brasileiro. Fora a esfera judicial per se, a conclamação popular por justiça contra golpistas, fascistas e genocidas carrega uma sorte de outras consequências que em geral só conseguem se realizar quando a primeira acontece. Por exemplo, quando o Estado brasileiro anistiou os militares e agentes de segurança na ditadura, o impacto imediato foi a impossibilidade de investigá-los e responsabilizá-los criminalmente pelas violências cometidas contra seus concidadãos. Mas, somada a outros fatores, a anistia abre um precedente para a ampliação da impunidade sobre outras esferas: a recusa das Forças Armadas em entregar os arquivos da ditadura em sua posse, mesmo com a vigência da Lei de Acesso à Informação; a homenagem a um torturador proferida por um parlamentar na Câmara dos Deputados; a carta branca das forças de segurança para promover chacinas em periferias do Brasil afora e não responder legalmente por isso (ou alegar legítima defesa), e por aí em diante.
As manifestações de caráter golpista que ocorreram em Brasília no dia 8 de janeiro denotam não apenas que o movimento fascista possui ampla capilaridade nas massas, mas que houve complacência das forças de segurança pública para que a invasão aos prédios públicos da Praça dos Três Poderes ocorresse. Esse grave episódio recente, aliado a outras demonstrações da existência de um componente abertamente fascista no Estado brasileiro representado pelas Forças Armadas e polícias militares, deve mobilizar com urgência o movimento popular e o governo recém-eleito de Lula a enfrentar o fascismo com mãos firmes. Isso deve passar necessariamente pela quebra do sigilo de Bolsonaro, a demissão do ministro da defesa José Múcio, a reforma democrática das Forças Armadas, intocadas desde sua origem, e a investigação e punição a todos os envolvidos nas manifestações golpistas, incluindo não apenas aqueles que promoveram o espetáculo de barbárie que assistimos no dia 8, mas toda a cadeia de comando dessas ações criminosas de caráter fascista.
Hoje é tarefa do movimento popular erguer a bandeira contra a anistia para que os últimos 4 anos de barbárie não passem impunes. A essas mobilizações devem necessariamente combinar-se medidas enérgicas por parte do governo Lula, para que as investigações transcorram e, fundamentalmente, para que sejam revertidas todas as políticas que levaram o povo brasileiro a esse estado de profunda miséria e carestia. Tal como nos anos 1970, em que a fome, a miséria e o desemprego escancararam a falácia do tal “milagre econômico”, as hordas fascistas anseiam, sobre um castelo de cartas que leva o lema “Deus, pátria e família”, pelo aprofundamento de uma condição miserável de vida para o povo que dizem honrar e defender.
Em 1979 a anistia aos presos políticos foi uma conquista do movimento popular que pressionava o poder militar em diversas frentes. Mesmo sob a vigência do brutal Ato Institucional nº 5, os anos 70 assistiram a reorganização dos estudantes, trabalhadores, e a fundação de comitês pela anistia dos presos políticos em todo Brasil. Se não fosse o povo em luta, talvez só saíssem anistiados da transição os milicos. A anistia foi, ao mesmo tempo, uma vitória e uma derrota, e segue tão viva que por ela sofremos uma derrota novamente em 2007 quando o Supremo Tribunal Federal fez uma opção reacionária e julgou improcedente a sua revisão. A ausência de justiça para os crimes da ditadura, em um cenário tão distinto daquele vivido pelos nossos irmãos argentinos, como retratado no filme Argentina, 1985, permitiu que os herdeiros do fascista general Sylvio Frota fossem os porta-vozes do governo Bolsonaro. Contra eles, anistiados e munidos de um artigo constitucional que lhes confere o estatuto de Quarto Poder, lutamos e exigimos justiça. Sem anistia e sem perdão.
“Chora
a nossa pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
no solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
a esperança”
A música O bêbado e a equilibrista, composta por Aldir Blanc e João Bosco e maravilhosamente interpretada por Elis Regina, é considerada o Hino da Anistia.