E essa história de voto impresso
Por: Henrique Martins
Já há algum tempo, Bolsonaro encasquetou com a questão das urnas eletrônicas dizendo que o voto precisa ser impresso. Toda vez que isso vem à tona novamente, vemos boa parte da esquerda se alvoroçando para repudiar tal movimento e rejeitar tal propositura muitas vezes com argumentos que não correspondem à realidade. Fica claro que opera aí uma postura de simples negação – aquela que permanece condicionada ao objeto da negação, diga-se de passagem – ao governo: se Bolsonaro quer algo, queremos o contrário disso. A partir daí busca-se uma forma de justificar a posição.
Evidência disso é ver que vozes da oposição que hoje denunciam ferrenhamente a tentativa de Bolsonaro, outrora apoiaram com naturalidade essa proposta, como é o caso do PSOL, que em 2015 apoiou a regulamentação do voto impresso na câmara. Enquanto essa pauta não havia sido encampada por Bolsonaro, eram poucos os que viam nela um potencial perigo à democracia. E vale lembrar, milícias, coronéis e outros grupos de poder local não surgiram com a ascensão de Bolsonaro.
O intuito desta breve nota é esclarecer minimamente o quê se trata essa proposição e refletir um pouco porque tem tomado tanto destaque ultimamente. Comecemos vendo onde isso começou, com a Lei 12034 de 2009, sancionada por Lula:
Art. 5o Fica criado, a partir das eleições de 2014, inclusive, o voto impresso conferido pelo eleitor, garantido o total sigilo do voto e observadas as seguintes regras:
§ 1o A máquina de votar exibirá para o eleitor, primeiramente, as telas referentes às eleições proporcionais; em seguida, as referentes às eleições majoritárias; finalmente, o voto completo para conferência visual do eleitor e confirmação final do voto.
§ 2o Após a confirmação final do voto pelo eleitor, a urna eletrônica imprimirá um número único de identificação do voto associado à sua própria assinatura digital.
§ 3o O voto deverá ser depositado de forma automática, sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado.
§ 4o Após o fim da votação, a Justiça Eleitoral realizará, em audiência pública, auditoria independente do software mediante o sorteio de 2% (dois por cento) das urnas eletrônicas de cada Zona Eleitoral, respeitado o limite mínimo de 3 (três) máquinas por município, que deverão ter seus votos em papel contados e comparados com os resultados apresentados pelo respectivo boletim de urna.
Em 2015 tal matéria foi votada como PEC 182 no congresso tendo sido aprovada, mas em 2018 o Supremo Tribunal Federal barrou sua implementação para as eleições daquele ano. Atualmente, voltou a tramitar no congresso por iniciativa da deputada bolsonarista Bia Kicis. Esta, a PEC 135/2019, tem essencialmente apenas um artigo que diz:
Art. 1º O art. 14 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte § 12:
“Art.14 ……………………………………………………………………………. §12 No processo de votação e apuração das eleições, dos plebiscitos e dos referendos, independentemente do meio empregado para o registro do voto, é obrigatória a expedição de cédulas físicas conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas, de forma automática e sem contato manual, em urnas indevassáveis, para fins de auditoria.”
Lendo tais excertos já cai por terra boa parte das deturpações feitas que buscam caracterizar a proposta como um retorno ao voto em papel, ou como se o eleitor pudesse levar o comprovante ou uma foto deste para casa e coisas do tipo. Fica bastante claro que o intuito declarado da proposta é acrescentar a impressão de voto à votação em urna eletrônica e esse voto impresso sendo conferido (sem manuseio) pelo eleitor e depositado em urna física no mesmo local da votação. O propósito dessa inovação seria dar a possibilidade do eleitor se certificar que está sendo registrado de fato aquilo que ele votou, uma vez que as urnas eletrônicas são auditadas somente por amostra, então não há como garantir que não haja algum código rodando em algumas urnas que faça ela registrar um total diferente do que foi efetivamente digitado pelos eleitores. Além disso, permitiria uma eventual recontagem dos votos, coisa que hoje não é possível, pois a contagem de votos hoje é simplesmente a soma de todos os boletins de urna, de modo que não se vê os votos individuais. De diferentes posições do espectro político de vez em quando ouvimos questionamentos sobre terem sido fraudados nas urnas. Tais denúncias evidentemente nunca foram provadas, justamente porque hoje não há meio nem de provar nem de desprovar tais afirmações. Cabe dizer ainda que essa modificação não seria nenhuma jabuticaba. Ao contrário, encontramos isso em outros países do mundo, como por exemplo nossa vizinha Venezuela, cujo sistema eleitoral é um dos mais avançados do mundo, o qual é devidamente aberto para testemunhas internacionais e apesar das inúmeras tentativas de descrédito por parte do imperialismo, nenhuma fraude foi substancialmente comprovada.
Uma vez que temos claro o que propõe o projeto, ou pelo menos o que ele não propõe, podemos começar a refletir duas questões importantes: ele ajuda em algo no aprimoramento de nossa democracia formal? e por que Bolsonaro quer tanto que isso seja aprovado?
Sobre a primeira questão, não acredito que já tenhamos como dar uma resposta definitiva sobre uma melhoria, mas parece seguro afirmar que não se trata de nenhum retrocesso. Pode ser que não haja grande avanço, pois não está muito claro ainda o procedimento que seria usado para ativar uma recontagem, ou se haveria alguma auditoria física como padrão. É preciso que se encontre uma forma de que a transparência extra obtida não se torne uma ferramenta de contestação infundada por parte de grupos isolados ou de que se isso ocorrer, não fique prejudicado a totalidade do processo eleitoral. Certamente são pendências em aberto que não podem ser negligenciadas, mas de forma alguma podemos falar já de catástrofes contidas como necessidade na inovação do voto impresso.
Para responder a segunda questão é preciso primeiramente enxergar o governo Bolsonaro sob a perspectiva da guerra híbrida que vem assolando nosso país acentuadamente nos últimos anos, e que sob seu mandato tomou novos contornos, sobretudo com o recorrente emprego de operações psicológicas. Faz parte do modus operandi do bolsonarismo o frequente uso de “cortinas de fumaça” e táticas afins para confundir e desviar sua oposição das pautas principais que verdadeiramente conferem-lhe sustentação. Isso significa que para as ações e proposições deste governo não devemos buscar apenas um sentido direto, mas também ver para quais fins indiretos estas podem estar servindo. No caso do voto impresso, uma boa hipótese parece ser a preparação de terreno para uma contestação quente à sua eventual derrota nas urnas. É claro, pode se argumentar com alguma justeza, que Bolsonaro e sua gangue de fanáticos não precisam de um casus belli coerente para se ouriçar numa tentativa de ruptura, ou que se não for essa, irão achar outra história pra contar. De fato, a história está cheia de desculpas insustentáveis e ataques sem declaração de guerra. Mas igualmente, se é verdade que ele está preparando terreno para algo, não é prudente de nossa parte deixá-lo seguir tranquilamente com seus preparativos. Desde Sun Tzu, sabemos que não se deve deixar o inimigo escolher o terreno e as circunstâncias do combate.Para combater o governo Bolsonaro, não nos basta o enfrentamento direto, pois ele já conta que façamos isso. Que a esquerda vá se opor a toda medida sua (inclusive entrando em contradição com seu passado em alguns casos) já é o que ele espera. Não devemos dançar conforme sua música. É extremamente possível que o objetivo de Bolsonaro seja de fato não a aprovação do voto impresso, mas que seus adversários políticos fiquem publicamente vinculados com a posição de rejeição ao voto impresso – que como vimos, ou melhora, ou no pior dos casos, deixa na mesma. Bolsonaro poderia então muito bem desenvolver um ataque em pinça, no qual o movimento atual seria complementado em 2022 com algumas denúncias fabricadas sobre fraude, dando para sua base um motivo aparentemente bem justificado para se insurgir contra o resultado.
Portanto, considerando o caráter concreto do que está sendo proposto, onde não se desenha nenhum retrocesso (fico aberto para no debate quem quiser colocar elementos que eu possa não estar vendo) e como isso possivelmente faz parte de uma preparação de Bolsonaro, acredito que a postura mais inteligente para sua oposição seria largar o combate frontal direto e passar para uma postura que tire dele o momento de ataque. Vamos dobrar a aposta, pedir seis. Vamos lutar não contra o voto impresso, mas a favor de uma regulamentação adequada dessa inovação, que não apenas desarme uma das vias de contestação de Bolsonaro, como de quebra também aprimore nosso sistema eleitoral, dentro do que é possível neste limitado sistema político vigente.