Reforma Administrativa, a proposta do governo Bolsonaro para destruir o serviço público
Estamos em meio a pandemia do Covid-19 com a triste marca de 140 mil mortos. Nesse contexto o acesso aos serviços públicos e gratuitos, especialmente do SUS e da assistência social, tem sido a diferença entre a vida e a morte para o povo brasileiro. É o momento de valorizar os profissionais e investir nas políticas públicas, mas o governo Bolsonaro em aliança com o congresso faz o contrário e apresenta uma Reforma Administrativa (PEC 032/2020) que busca eliminar direitos dos servidores que estão na linha de frente e transformar os serviços públicos em balcão de negócios.
Para justificar a Reforma, a propaganda governista tenta vender a ideia de que as mudanças afetam apenas o servidor público e a grande mídia repete o argumento de que é para cortar privilégios, como estabilidade e super salários, mas ao observar os dados reais, percebemos que esse discurso é falso.
No Brasil o servidor público não tem remunerações tão diferentes do setor privado. Apesar do salário do servidor ser em média 8% maior do que no cargo equivalente do setor privado (enquanto no resto do mundo essa diferença chega a 21%), os servidores públicos não tem direito ao FGTS, por exemplo. Em relação a quantidade de servidores, o IPEA aponta que o Brasil tinha em 2017 o equivalente a 5,48% da população trabalhando no setor público, incluindo os que trabalham em regime CLT. Um estudo comparativo da OCDE trabalha com dados menos precisos. Ao invés de usar a quantidade de pessoas, considera o número de vínculos e apresenta números inflados, porque alguns servidores tem duplo vínculo, como é o caso dos trabalhadores da saúde e educação, que costumam trabalhar em mais de uma escola ou hospital. Nesse estudo o Brasil tem 12,1% da população no serviço público, mas a média dos países da OCDE é de 18%. Todos os dados demonstram que, no cenário internacional, o Brasil não tem um número exagerado de servidores públicos e, pela média, não paga super salários como a mídia costuma anunciar.
O Atlas do Estado brasileiro, produzido pelo IPEA em 2019, indica que os servidores públicos brasileiros estão 57,3% na esfera municipal, 32,3% esfera estadual e 10,4% na esfera federal. Estado e município concentram os profissionais cujo trabalho está ligado a nossa vida cotidiana. Entre os servidores municipais encontramos, principalmente, professores, trabalhadores do SUS, assistentes sociais, garis. A média salarial dos servidores municipais é de 2,8 mil reais, mas a maioria desses servidores recebe até R$ 2,2 mil reais, que é a média salarial do setor privado.
No serviço público estadual encontramos os mesmo profissionais já citados e mais algumas categorias como policiais, bombeiros, trabalhadores em companhia de água, eletricidade e saneamento, setores do judiciário, órgãos de fiscalização, etc. Entre esses trabalhadores a média salarial é de 5 mil reais.
Na remuneração dos servidores federais existe uma diferença significativa com a média salarial do do setor privado, mesmo assim, a realidade é diferente da que apresentam os defensores da Reforma Administrativa. Na média do salário dos servidores federais estão os pagamentos de deputados, senadores, ministros, juízes, desembargadores, ministros do supremo, generais e oficiais das FFAA, diplomatas e outros que recebem o salário máximo permitido na constituição, alguns inclusive recebem acima do teto. Mesmo contando com esses setores a média salarial dos servidores federais é de 9 mil reais, isso porque também pertencem a essa categoria profissionais como professores, médicos, pesquisadores e cientistas, policiais federais, servidores do IBAMA e outros órgãos de fiscalização, trabalhadores do INSS, de universidades e institutos federais, trabalhadores da base do sistema judiciário, entre outros, que mesmo tendo alto nível de formação, tem salários muito abaixo do teto.
Na imagem acima podemos observar no gráfico da esquerda a média salaria dos servidores das três esferas e no gráfico da direita a mediana dos salários, ou seja, quanto recebem os servidores que estão no meio do caminho entre o menor e o maior salário em cada esfera. Os dados demonstram que a maioria dos servidores recebem abaixo da média.
Se existe margem para questionar o valor do salário de algumas das profissões citadas ou a diferença entre o salário de uma professora e um ministro do STJ, não é isso que a Reforma enfrenta.
Não podemos esquecer que os mesmos defensores da Reforma Administrativa, aprovaram a reforma da previdência e a reforma trabalhista usando o mesmo discurso mentiroso de corrigir injustiças. Se essas mudanças nos direitos dos trabalhadores tem algum aspecto de nivelar os padrões de remuneração e direitos, já sabemos que é sempre para pior. No caso dos serviço público, o prejuízo é para o povo todo, porque ele não atinge apenas os direitos corporativos do servidor público, mas a lei também ataca os aspectos republicanos do Estado brasileiro, que garantem que as políticas públicas funcionem com independência e autonomia aos partidos e políticos eleitos.
As políticas públicas conseguem garantir direitos quando são política de Estado, quando tem estrutura, orçamento, carreiras profissionais e regulamentações próprias. É por isso que saúde, educação e outras políticas públicas estão fixadas na Constituição, para terem caráter permanente e não ficarem a mercê deste ou daquele governo.
Em abril o ministro Paulo Guedes declarou que colocaria “uma granada no bolso no inimigo”, se referindo aos servidores públicos como uma torre a ser derrubada. As categorias dos servidores públicos estão entre as mais organizadas do movimento sindical e tem tido grande protagonismo nas lutas em defesa da educação, da saúde, das políticas públicas e dos direitos dos trabalhadores.
Acabar com a estabilidade neste setor cumpre o objetivo de enfraquecer as lutas da classe trabalhadora. Outra questão central é o controle do Estado e dos cofres públicos, porque a estabilidade não é um privilégio da pessoa que foi aprovada no concurso, mas trata de uma atribuição do cargo, protegendo a atuação profissional contra o assédio e a troca de favores, ou seja, sem ela não seria possível garantir o principio da moralidade pública.
Se o patrão puder demitir de acordo com sua vontade (e no serviço público o patrão pode ser prefeito, governador, presidente ou até um cargo comissionado), nos órgãos públicos só vão sobrar bajuladores e apoiadores de campanha.
Além de permitir que os governos de plantão demitam servidores, a PEC também propõe alterar a forma de contratação. Hoje os candidatos são convocados para assumir as vagas de acordo com sua classificação no concurso público, ficam em estágio probatório sendo avaliados por 3 anos (algumas categorias são submetidas a períodos mais longos) numa comissão composta pela chefia e por colegas. Se considerados aptos, permanecerão no cargo com estabilidade, mas sujeitos à punições e à demissão mediante processo. Para os cargos que implicam em responsabilidade técnica, o servidor também fica sujeito a responder individualmente, como acontece no setor privado.
A PEC acaba com a imparcialidade do concurso público ao criar uma etapa posterior à prova objetiva. Nessa etapa as pessoas que passaram na prova ficarão concorrendo entre si e mesmo que todos se provem aptos e plenamente capazes, serão efetivados apenas os que atingirem o “melhor desempenho”. Os critérios de avaliação não estão estabelecidos e ficariam sujeitos a lei complementar. Na prática, o Estado cria uma subcategoria de servidores que não tem os mesmos direitos, nem segurança sobre seu futuro profissional e que entende seu colega como adversário a ser batido. Os que fossem efetivamente contratados nesse processo, mesmo assim, não teriam estabilidade garantida, já que ela se torna exclusividade das “atividades típicas de Estado” – conceito não definido pela PEC – e também seriam regido por lei complementar (mas pela lógica empresarial e privatista do projeto basta que procuremos equivalência no setor privado). Professores, profissionais da saúde, administrativos, assistentes sociais e a grande maioria das profissões que existem no setor privado, ficam sem estabilidade. A exceção seriam juízes, promotores, desembargadores, militares, diplomatas e algumas poucas categorias.
Além de criar o servidor efetivo sem estabilidade, a PEC 032/20 acaba com a regulamentação do contrato temporário ao revogar a “contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público” – usada principalmente para situações de desastres e calamidade ou para atividades sazonais, como o senso do IBGE. No lugar dessa definição, a Reforma propõe permitir contratação temporária através de “processos simplificados” para atender “atividades ou procedimentos sob demanda”, ou seja, sem nenhum critério.
Outra medida de desmando é o fim da obrigatoriedade de preencher certos cargos de chefia com servidores efetivos, como hoje é estabelecido na Assistência Social. Se a reforma for aprovada, todo e qualquer cargo de chefia poderá ser ocupado por cargos comissionados. Ao mesmo tempo ficarão facilitadas as condições para que militares possam assumir a chefia dos serviços de saúde e educação, militarização de escolas, postos de saúde e hospitais.
Basicamente, o objetivo da reforma é transformar o Estado em uma empresa privada e os políticos eleitos em seus donos. Isso fica ainda mais nítido nas modificações propostas para as regras de contratação de serviços e parcerias. A PEC propõe que União, Estados, o Distrito Federal e os Municípios possam “firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira”. Assim, caem por terra as leis de parcerias e licitações hoje existentes e os governantes ficam com carta branca para contratar empresas privadas e “Organizações Sociais” (já conhecidas pelas inúmeras fraudes) – deixando, inclusive, os servidores contratados antes da PEC submetidos a essas empresas. A regulamentação de tais “cooperações” ficará sujeita a Lei Complementar, mas no meio tempo entre a aprovação da Reforma e a regulamentação federal, governadores e prefeitos ficam livres para definir seus próprios termos.
É importante destacar que hoje as prefeituras, governos estaduais e federal, são obrigados a gastarem seus recursos obedecendo as leis orçamentárias, não importa se o recurso veio por repasse das outras esferas de governo ou se é resultado de recursos próprios, como impostos e taxas municipais e estaduais. Isso garante um percentual obrigatório de investimento para as políticas sociais. O texto da reforma propõe que os entes públicos tenham liberdade para “exploração do próprio patrimônio” permitindo a privatização irrestrita e também a “gestão das receitas próprias” – pela qual, por exemplo, uma prefeitura poderia usar a arrecadação do IPTU fora da lei orçamentária e gastar tudo em obras e contratos, sem destinar nenhuma centavo dessa verba para a educação e a saúde.
Como reforço à lógica da privatização das empresas públicas como a Petrobrás, a Reforma propõe ainda que o Estado brasileiro fique proibido de proteger as empresas públicas ou de economia mistas através de reservas de mercado ou garantia de monopólio do Estado. Se a PEC for aprovada qualquer recurso estratégico do país, como petróleo, água, recursos minerais e de biodiversidades ficam sujeitos a exploração e “livre concorrência” do mercado.
Já sobre a questão específica dos direitos trabalhistas dos servidores e empregados de empresas públicas a PEC estabelece que:
* Todas as definições sobre “política remuneratória e de benefícios”, “ progressão e promoção funcionais”, “ organização da força de trabalho no serviço público” serão regulamentados em lei complementar, sendo assim, ficam sem validade todos os planos de carreira hoje existentes;
* Proíbe “férias em período superior a trinta dias pelo período aquisitivo de um ano”, um ataque direto aos professoras e professores que perdem o direito às férias escolares;
* Proíbe “adicionais por tempo de serviço”, ou seja, anuênios, triênios e demais;
* Proíbe “aumento de remuneração ou de parcelas indenizatórias com efeitos retroativos”, sendo assim, ficam perdoadas as dívidas e cláusulas de acordos coletivos não cumpridas pelos governos;
* Acaba com “licença prêmio, licença-assiduidade ou outra licença decorrente de tempo de serviço, independentemente da denominação adotada, ressalvada, dentro dos limites da lei, licença para fins de capacitação”;
* Proíbe a “progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço”, assim os anos de experiencia acumulados pelos servidores deixam de valer para progredir na carreira;
* Proíbe “a concessão de estabilidade no emprego ou de proteção contra a despedida para empregados de empresas públicas, sociedades de economia mista e das subsidiárias dessas empresas e sociedades por meio de negociação, coletiva ou individual, ou de ato normativo que não seja aplicável aos trabalhadores da iniciativa privada” – um evidente reforço ao assédio e a perseguição contra as greves e lutas dos trabalhadores.
* Fica “vedada a redução de jornada e da remuneração para os cargos típicos de Estado”, por oposição fica permitida a redução de jornada e salário dos servidores que ocupam cargos não “típicos de Estado”.
* O presidente fica autorizado a extinguir órgãos e carreiras públicas através de decreto.
Quem são os defensores da reforma?
Já vimos que a possibilidade de mandar e desmandar no serviço público unificou Bolsonaro com a velha direita e o centrão no Congresso e é óbvia a defesa da reforma pela grande mídia, mas por trás dos políticos e dos jornais estão os grandes monopólios e seus agentes do capital financeiro que querem abocanhar os recursos das políticas sociais através de privatização, terceirização e do fim do investimento obrigatório em saúde, educação e outras políticas. Para o mercado da educação e da saúde privada, a desgraça das escolas e hospitais é um bom negócio. Não por acaso entre as autoridades apresentadas na mídia está o Insper, antes Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais e o instituto Leman, do milionário Jorge Paulo Leman grande investidor da educação privada, além de outros tink tanks, como o Instituto Millenium,que unificam banqueiros, donos de canais de TV e jornais e dos grandes monopólios nacionais e internacionais.
As classes dominantes sempre tentaram sucatear e privatizar as políticas sociais e conseguiram impor diversas derrotas pontuais aos direitos do povo brasileiro, mas essa política de extrema direita nunca teve um governo tão disposto a acabar com os avanços da constituição de 88.
É preciso que a classe trabalhadora e seus aliados construam uma ampla unidade para combater essa reforma. Devemos articular especialmente o movimento sindical, a partir das centrais sindicais e da base do movimento e articular uma campanha nacional para dialogar com o povo aonde o estrago será mais sentido, nas escolas, creches, Unidades Básicas de Saúde e hospitais.