Novos desdobramentos de velhas contradições: a crise do capital e a perigosa situação geopolítica

Novos desdobramentos de velhas contradições: a crise do capital e a perigosa situação geopolítica

O desenvolvimento da crise estrutural do capital se expressa, dentre outras coisas, no acirramento das disputas geopolíticas no âmbito econômico, militar, ideológico e tecnológico. A crise estrutural do capital transforma as crises cíclicas em desequilíbrios cada vez mais prolongados, com recuperações mais curtas e períodos depressivos mais duradouros. Não tivemos uma recuperação expressiva ainda da crise de 2008, nem do seu repique em 2013-14, e agora a pandemia da COVID-19 acelerou uma já anunciada nova fase depressiva.

É cada vez mais evidente a disputa pela hegemonia mundial, com a ameaça que representam China e Rússia, junto ao eixo Irã-Turquia e países desobedientes à potência imperialista norte-americana, sob o discurso da “multipolaridade”.

Buscando reafirmar seu poder, a Casa Branca paralisa as mesas de diálogo em busca de um acordo comercial, e acusa os chineses de promover “dívidas impagáveis” com o projeto “Cinturão e a Rota” e o avanço da tecnologia 5G. Os EUA continuam em uma posição altamente beligerante, acusando a China de ter propagado a COVID-19 e exigindo reparações. No entanto, a perspectiva de que, em 2025, a China ultrapasse o PIB dos EUA, expressa que no campo econômico pode haver uma reorganização de peso e importância mundial.

O contexto de pandemia deu maior centralidade ao aspecto científico-tecnológico, e o desenvolvimento da vacina contra a COVID-19 passou a ser fundamental para determinar a reativação econômica em 2021. Neste caso, novamente, os evidentes avanços dos cientistas chineses e russos se impõem, enquanto os testes em humanos de Aztraneca e Oxford tiveram de ser suspendidos. A balança pesa contra o império yankee e a União Europeia.

No aspecto militar, o reposicionamento de tropas da OTAN na Europa e as ameaças contra a Bielorrússia tentam cercar o governo de Vladimir Putin. Há de se destacar também a posição cada vez mais dúbia da Alemanha. Os EUA incidem pressão para que a Alemanha abandone o projeto do gasoduto Nord Stream 2, que cruzaria o mar Báltico e levaria gás russo diretamente para a Europa, sem cruzar a Polônia e nem os países bálticos. Esse projeto levou a tensionamentos dentro da União Europeia, com a Polônia também disputando uma posição de liderança dentro do bloco. Não parece acidental, portanto, as recentes perturbações nas fronteiras com a Rússia, como é o caso da crise na Bieolorrúsia, a potencial guerra entre Azerbaijão e Armênia, bem como o misterioso envenenamento do opositor russo Alexei Navalny, que gerou tensões na aliança entre Alemanha e Rússia.

Tropas das OTAN em exercício militar na Polônia

Os conflitos pelo controle do Mar Meridional e o lobby por um conflito na região com os países da Associação dos Países do Sudeste Asiático (Asean) mostram o nível de agressividade do Pentágono para reafirmar sua posição de primeira potência militar.

Nesse contexto, o establishment termina recorrendo às ameaças nucleares para reforçar sua posição de hegemon e de país que concentra a maior quantidade de ogivas nucleares no mundo. Trump alega que Putin não cumpre acordos de armas nucleares, enquanto busca retomar exercícios com as tropas estadunidenses.

As operações não foram aprovadas pelo Estado Maior do Pentágono, numa evidente jogada política prévia às eleições. Diante de uma possível vitória democrata, várias figuras importantes do alto mando militar demonstraram sua predileção por um governo Biden, quem no passado, protagonizou, junto com Obama, oito anos ininterruptos de gestão presidencial em guerra.

Se no âmbito das potências as disputas entram em uma nova fase, nos países de capitalismo dependente e associado também já se começa a ver os reflexos da crise do capital.

Na nossa região, a expressão dessa crise se dá pelo aumento acelerado da precarização da vida da classe trabalhadora, sendo postas em prática políticas privatizantes, com a aplicação de reformas que atacam diretamente os direitos trabalhistas, previdenciários e permitem o livre extrativismo das riquezas naturais.

Depois da chamada “década ganhada”, a retomada da Doutrina Monroe foi um mecanismo fundamental para domar a região, aplicando golpes de Estado; perseguindo, através da judicialização, lideranças de esquerda; ou apoiando financeiramente candidaturas alinhadas à Casa Branca.

Dessa maneira, foram instalados governos satélites, sem qualquer tipo de projeto nacional, que agudizam seu entreguismo para garantir seu enriquecimento próprio e o apoio incondicional do Tio Sam.

Jeanine Áñez, senadora pelo estado de Beni, assumiu o governo de facto, em novembro de 2019, com apoio das outras frações golpistas.

Tais governos se empenharam na aplicação completa do programa do imperialismo para a América Latina, isto é, tutela política e acumulação por expropriação econômica. Vigora, de fato, uma política de recolonização da América Latina.

Promovendo reformas laborais, previdenciárias ou fiscais, esses novos governos destroem a estrutura pública e as cadeias produtivas nacionais que não lhes interessam, e criam novos mecanismos de benefícios aos monopólios, ao latifúndio e ao capital financeiro transnacional.

Os EUA também patrocinam uma cruzada ideológica apoiada nos seus think tanks que promovem ideias pseudo-liberais para manipular e justificar a extinção de direitos trabalhistas em prol do “empreendedorismo”, a terceirização global e a privatização de setores estratégicos da economia.

A aridez da realidade concreta, porém, se impõe. A reestruturação produtiva e a reprimarização da economia em torno de um novo impulso do capital produzem necessariamente mais miséria e fome, elevando significativamente, também, a tensão social.

Governos de alinhamento automático com os EUA que foram “eleitos” têm tido dificuldade de se manterem no poder, como foi o caso da Argentina, ou chegaram à metade do mandato com recordes de desaprovação e com economias totalmente esmigalhada.

A previsão da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal) é de uma retração de 9,1% na atividade econômica de toda região. 

Os índices atuais apontam que a queda pode ser ainda maior.  No Peru, o desemprego, entre abril e junho, cresceu 8,8%, e a produção nacional caiu 17,3% somente no primeiro semestre do ano.

Multiplicam-se as filas na busca de emprego em Lima, capital peruana.


Na Bolívia de Jeanine Áñez, o desemprego já chega a 7,4%, a informalidade atinge 80% da classe trabalhadora e, até o final do ano, o PIB pode retrair 5,9%.

Na Colômbia, de Duque, a projeção otimista da Associação Nacional de Instituições Financeiras é de que o desemprego chegue a 18,5%, podendo alcançar, num cenário pessimista, 22,5%. Já o PIB poderia contrair entre 3,4 e 4,5%. 

O Chile, de Piñera, exemplo de economia Chicago Boy – Paulo Guedes, tampouco vai melhor. A expectativa do Banco Central é de que a nação enfrente a maior crise econômica dos últimos 35 anos, com uma queda nos ingressos de 7,5% e de 4,1% no consumo interno.

O Brasil, com Bolsonaro, pela primeira vez na história, tem mais desempregados e desocupados entre a população economicamente ativa que empregados. Entre aqueles que têm trabalho, 40% são informais, sem direitos básicos garantidos. 

Todos os países também estão no ranking das 10 nações mais afetadas pela COVID-19 na região. A retração econômica, somada ao aumento dos custos básicos de reprodução da vida e da precarização do trabalho, são três pilares que provocaram o acirramento da luta de classes no continente.

A crise generalizada, a falta de projetos nacionais e a submissão total aos Estados Unidos também geram dificuldades de criar um bloco unitário da direita regional. A tentativa de criar a aliança ProSul, defendida por Piñera, Duque e Bolsonaro, no lugar da Unasul, falhou antes mesmo de existir. 

O Grupo de Lima, que reúne 16 nações do continente americano, com intuito central de combater o governo venezuelano de Nicolás Maduro, tampouco manteve sua unidade, e muito menos avançou em torno de uma aliança mais propositiva. 

Essa desarticulação da direita regional poderia ser um ponto a favor do campo progressista, já que, apesar da desorganização e debilidade da esquerda, em toda a região há expressões da resistência – o que fez com que o aparato coercitivo dos Estados também se impusesse.

Em 2020 foram realizados 64 massacres na Colômbia, segundo dados do Instituto para o Desenvolvimento da Paz.

Na Colômbia, o Para-Estado, associado ao narcotráfico, intensificou a violência com cifras que remontam aos anos 1990. Somente em 2020, foram realizados mais de 60 massacres, gerando cerca de 230 vítimas mortais – a maioria jovens. No dia 9 de setembro, uma manifestação contra a violência policial terminou com um saldo de 14 mortos em Bogotá.

O recado é claro: conter lideranças comunitárias para impedir que se avancem os processos iniciados com os Acordos de Paz de 2016, como a substituição de cultivos ilícitos e a luta por uma reforma agrária, e garantir o controle dos territórios férteis e das rotas de narcotráfico. Enquanto desata a matança no seu território, Iván Duque se apega à ideia de inimigo externo com a Venezuela para distrair a opinião pública.

Já no Chile, depois de um ano dos protestos que paralisaram o país exigindo uma nova constituição, que substitua a atual carta magna herdada da ditadura de Augusto Pinochet, finalmente os movimentos sociais conquistaram uma data para a realização do plebiscito, que será celebrado no dia 25 de outubro. Faltando menos de um mês para o evento, o governo de Sebastián Piñera recrudesceu a repressão contra os povos Mapuche, e usa a força policial carabinera para impedir atividades de campanha pelo voto “sim” à reestruturação constitucional.

No âmbito legislativo, busca, através de alianças até mesmo com o Partido Socialista, conseguir votos que atropelem as propostas pelos movimentos sociais para a eleição de deputados constituintes. Em caso de aprovada uma reforma da constituição chilena, Piñera quer que o atual congresso realize as alterações.

A situação não é diferente na Bolívia. Depois de quase um ano do golpe de Estado que derrubou o governo de Evo Morales e Álvaro García Linera, o MAS-IPSP segue como favorito às eleições presidenciais. Depois de adiar o processo em três ocasiões, o consórcio golpista tenta se aglutinar novamente para impedir a vitória de Luis Arce e David Choquehuanca.

Apesar de que uma lei prevê a impossibilidade de adiamento do processo eleitoral e que todas as pesquisas apontam o favoritismo da chapa MASista, é difícil acreditar que a direita golpista aceitará uma vitória da esquerda menos de um ano depois. A presidenta de facto Jeanine Áñez abandonou sua candidatura, já que figurava como quarta colocada, e não escondeu que seu gesto buscava a unidade dos conservadores contra o MAS.

Com os principais líderes políticos asilados, presos ou perseguidos pelo governo de facto, com um Poder Eleitoral deformado e liderado por um escritor financiado pela USAID, é improvável que o processo eleitoral boliviano possa acontecer sem fraudes.

A resistência, no entanto, permanece. A Central Operária Boliviana, os movimentos sociais e o povo em geral, que sentiu na pele os avanços que representou o governo Morales – Linera, organizaram uma greve geral de mais de dez dias para exigir a realização das eleições em setembro e, mais tarde, acordaram com a data final em outubro.

Luis Arce e David Choqehuanca (MAS-IPSP) lideram todas as pesquisas de opinião prévias às eleições de 18 de outubro na Bolívia.

Tudo isso mesmo depois dos massacres de Sacaba e Senkata, que deixaram 22 mortos pelas mãos da Polícia Nacional, durante manifestações contra o golpe de Estado, em novembro de 2019. A truculência como resposta imediata a qualquer expressão de resistência popular será cada vez mais presente no sufocamento da reorganização das forças progressistas na região.

É necessário reforçar a articulação entre partidos e movimentos de esquerda na região para amplificar as denúncias e disseminar os exemplos e luta e resistência. Se as disputas hegemônicas assumem um novo patamar, a resposta contra-hegemônica também deve se ampliar.

O internacionalismo proletário se faz cada vez mais urgente para fazer frente a essa ofensiva. Profissionalizar a comunicação dos partidos, frentes e movimentos; proporcionar espaços de unidade programática da esquerda; incentivar o estudo da realidade e da economia, a fim de formar quadros capazes de dar respostas à profunda crise em que estamos imersos; apropriar-se da tecnologia: são estas algumas das tarefas necessárias para a esquerda continental.

Ao mesmo tempo, é preciso apontar para uma saída estratégica revolucionária, que incorpore a necessária revolução anti-imperialista em nosso continente à revolução proletária e socialista. Sem sectarismo e sem ilusões institucionais, a organização das massas trabalhadoras e populares é a resposta.

A crise estrutural do capital eleva as contradições fundamentais do capitalismo a níveis exponenciais, colocando em risco a própria sobrevivência da humanidade. Os riscos ambientais, nucleares, energéticos e econômicos que a humanidade enfrenta, enquanto a lógica do capital permanece inalterada, são imensos. É preciso apontar para a única saída possível: o socialismo como sistema econômico e sócio metabólico com caráter racional e planificado.

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