O Crepúsculo dos Impérios e a Guerra dos Deuses: uma análise histórica e da Crise Global de 2025

Por: Bruno Mandelli, pós-doutor em História Contemporânea pela Ruhr-Universität Bochum
Resumo
Este artigo analisa a crise geopolítica de meados de 2025, centrada no confronto direto entre Israel e Irã, como um potencial prelúdio para um conflito global de larga escala. Argumenta-se que a crise representa um ponto de convergência de três processos históricos de longa duração: 1) a crise estrutural da hegemonia norte-americana, manifestada em uma transição estratégica da gestão da ordem para a sabotagem de potências rivais; 2) a radicalização da doutrina de Estado israelense, impulsionada por uma fusão de imperativos de segurança com uma ideologia teopolítica expansionista; e 3) a consolidação de um bloco de poder eurasiano, articulado em torno dos BRICS+, que desafia a ordem unipolar. Conclui-se que a crise atual é definida por um choque de “temporalidades” incompatíveis, no qual a banalização da experiência catastrófica do século XX e a ascensão de horizontes de expectativa messiânicos tornam a escalada para a guerra total um risco iminente e existencial.
1. Introdução: A História no Ponto de Inflexão
A questão que paira sobre o mundo em junho de 2025 — “Estamos à beira de uma Terceira Guerra Mundial?” — deixou de ser uma hipérbole retórica para se tornar o problema central da análise histórica e geopolítica do nosso tempo. A escalada vertiginosa do conflito entre Israel e o Irã, com suas ondas de choque se propagando por todo o sistema internacional, não pode ser compreendida como um mero espasmo de violência regional. Ela exige ser decifrada como o sintoma de uma desordem sistêmica mais profunda, um ponto de inflexão onde as falhas tectônicas da ordem mundial do pós-Guerra Fria se manifestam com uma fúria eruptiva.
Nossa tese central é que a crise de 2025 representa uma “tempestade perfeita”, na qual três fenômenos históricos interagem de forma sinérgica e explosiva. Primeiro, a crise estrutural da hegemonia norte-americana, que impele um império em declínio a abandonar a custosa gestão da ordem por uma estratégia de fomento do caos nos teatros geopolíticos cruciais de seus adversários. Segundo, a consolidação em Israel de um projeto de Estado revisionista e etnorreligioso que, na percepção de seus adversários e críticos, busca a hegemonia regional através de uma política de força contínua, agora imbuída de um fervor escatológico. E terceiro, a emergência de uma alternativa multipolar, centrada no eixo eurasiano dos BRICS+, que se torna o alvo principal dessas ansiedades imperiais e regionais. Argumentaremos que este conflito não é apenas geopolítico, mas fundamentalmente temporal: um choque de passados irreconciliáveis e futuros mutuamente exclusivos que, ao espelhar e radicalizar os perigos que conduziram às catástrofes do século XX, coloca a própria continuidade da história humana em questão.
2. A Desagregação da Ordem:
A aparente irracionalidade da política externa norte-americana, por vezes descrita por analistas como Pepe Escobar com metáforas como a de um “Circo do Picadeiro” (Ringmaster’s Circus), mascara uma lógica geopolítica fria, nascida da consciência de um declínio relativo. A crise de 2025 não pode ser entendida sem primeiro se compreender a crise do seu principal patrono e, até recentemente, o arquiteto da ordem global. O Império Americano, confrontado com os seus limites materiais e ideológicos, optou por uma estratégia de gestão do seu declínio que privilegia a disrupção sobre a liderança.
O fim da Guerra Fria inaugurou o “momento unipolar”, mas a euforia foi breve. A obra de Paul Kennedy, The Rise and Fall of the Great Powers, forneceu o quadro teórico para o que se seguiria: o “esgotamento imperial” (imperial overstretch). As guerras no Afeganistão e no Iraque, conforme detalham historiadores como Andrew Bacevich, foram o principal catalisador deste processo. Concebidas como demonstrações de força para remodelar o “Grande Oriente Médio”, elas se tornaram pântanos militares e financeiros. O projeto “Costs of War” da Brown University estima que os custos fiscais diretos dessas guerras ultrapassaram os 8 trilhões de dólares, acelerando a desindustrialização e o endividamento interno. Este “espaço de experiência”, para usar o termo de Koselleck, de um poder militar supremo incapaz de traduzir vitórias no campo de batalha em resultados políticos duradouros, é a fonte da atual ansiedade estratégica de Washington.
Esta ansiedade é magnificada pela emergência de um desafio sistêmico que os estrategistas americanos do século XX sempre temeram. Zbigniew Brzezinski, em The Grand Chessboard, identificou o controle da massa terrestre eurasiana como a chave para a primazia global, alertando contra o surgimento de uma coalizão hostil nesta região. A parceria estratégica cada vez mais profunda entre a China e a Rússia, com o Irã como um pivô energético e geográfico essencial, é a materialização exata desse cenário. A expansão dos BRICS+, que em 2024 formalizou a inclusão de potências energéticas como Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, representa a institucionalização de um projeto de ordem multipolar. Este projeto visa criar infraestruturas financeiras (como o Novo Banco de Desenvolvimento e os arranjos de comércio em moedas locais que contornam o dólar), logísticas (a Iniciativa do Cinturão e Rota – BRI) e energéticas (acordos de longo prazo entre Rússia, Irã e China) independentes do controle ocidental. O Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC), que conecta a Rússia à Índia através do Irã, é um exemplo paradigmático de uma tentativa de reconfigurar os fluxos comerciais para longe das rotas marítimas dominadas pelos EUA.
Confrontados com um rival econômico que não conseguem mais conter (China) e um rival militar que não conseguem subjugar (Rússia), os EUA, segundo a teoria do realismo ofensivo de John Mearsheimer, recorrem a estratégias indiretas para manter sua primazia. A tese de uma “guerra imperial contra os BRICS” travada por procuração no Oriente Médio alinha-se com este modelo. Atacar o Irã, ou sancionar um ataque israelense, é uma manobra de alto impacto: visa destruir o que é percebido como o “núcleo energético dos BRICS” (desestabilizando a segurança energética da China); cria um foco de caos no flanco sul da Rússia; e, acima de tudo, busca reafirmar a centralidade do poder militar americano como o árbitro final da desordem. Como aponta o historiador econômico Adam Tooze, a utilização de sanções e do poderio militar como ferramentas para gerir a competição geoeconômica tornou-se uma marca da política externa americana no século XXI. A questão crucial é se esta estratégia de sabotagem não acelera paradoxalmente a própria bipolarização que Washington desejava evitar, forçando os rivais dos EUA a solidificarem sua parceria.
3. A Teo-Geopolítica da Terra Prometida: Revisionismo Messiânico e a Lógica da Guerra Total
Enquanto a crise do império americano fornece o contexto global, a dinâmica regional é inflamada por um motor ideológico de uma potência e intensidade singulares. A crítica, antes restrita a círculos acadêmicos e que agora ganha tração no discurso internacional, de que Israel se tornou um Estado genocida, aponta para uma transformação real no caráter do projeto sionista. Assiste-se à hegemonia de uma fusão entre o nacionalismo moderno e uma temporalidade messiânica que redefine os objetivos do Estado.
As raízes dessa transformação são profundas. O sionismo revisionista de Ze’ev Jabotinsky, com sua visão de um “Muro de Ferro” (Iron Wall), analisada por Avi Shlaim, e sua reivindicação territorial sobre toda a Eretz Israel bíblica (ambos os lados do rio Jordão), forneceu o substrato ideológico. Contudo, foi a vitória na Guerra dos Seis Dias de 1967 que atuou como o catalisador decisivo. Como demonstra Gershom Gorenberg em The Accidental Empire, a conquista de Jerusalém Oriental e da Cisjordânia (Judeia e Samaria) foi interpretada pelo crescente movimento do sionismo religioso não como um ganho estratégico, mas como um evento teofânico, um sinal do início da era messiânica (Atchalta De’Geula). O “espaço de experiência” da nação foi imbuído de um significado divino. A terra tornou-se sagrada, e sua colonização, um mandamento religioso (mitzvah) que não pode ser objeto de negociação política. Como argumentou o historiador Zeev Sternhell, essa corrente representa a vitória de um nacionalismo irracional e antiliberal dentro do próprio sionismo.
Essa virada teopolítica, consolidada por décadas de políticas de Estado e pela ascensão de figuras como Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir a posições de poder, alterou o “horizonte de expectativa” de Israel. A controversa Lei do Estado-Nação de 2018, que define Israel como o lar nacional do povo judeu com direitos exclusivos à autodeterminação, e as tentativas de reforma judicial de 2023, vistas como uma forma de remover os freios do poder judiciário sobre o executivo, são manifestações institucionais dessa tendência. Na perspectiva do historiador Ilan Pappé, a política de ocupação contínua é um processo de “limpeza étnica incremental” ou “sociocídio”: a destruição da viabilidade de um Estado palestino através da aniquilacao do seu povo.
A guerra contra o Irã é a dimensão externa e culminante dessa lógica. Para a direita messiânica israelense, o Irã, com seu programa nuclear e sua liderança do “eixo da resistência”, não é apenas um rival geopolítico. Ele é enquadrado como a encarnação moderna de Amalek, o inimigo bíblico arquetípico que o povo de Israel foi ordenado a exterminar. Este enquadramento escatológico remove o conflito da esfera da política racional e o situa na da guerra santa. A destruição do Irã torna-se um ato de purificação cósmica, um passo para garantir a segurança do povo escolhido e apressar a redenção final. A ameaça existencial que o Irã representa é, assim, simultaneamente real (nuclear) e metafísica (teológica). Essa fusão cria um horizonte de expectativa absolutista, no qual a paz é sinônimo de vitória total e a guerra preventiva, um dever sagrado.
4. O Tempo Fora dos Eixos:
A convergência de um império em declínio e de uma potência regional messiânica coloca a questão final: por que a experiência das catástrofes do século XX parece ter perdido sua força de dissuasão? A resposta reside numa crise profunda da própria consciência histórica moderna, que Reinhart Koselleck definiu como a tensão dialética entre o “espaço de experiência” (Erfahrungsraum) e o “horizonte de expectativa” (Erwartungshorizont).
A Primeira Guerra Mundial ensinou a lição da “guerra por acidente”, de como sistemas de alianças rígidos e uma cultura de nacionalismo militarista podem levar nações a mergulhar, como “sonâmbulos”, na carnificina (uma tese explorada por Christopher Clark em The Sleepwalkers). A Segunda Guerra Mundial ensinou a lição do perigo da contemporização (appeasement) perante um ator revisionista com uma ideologia totalitária. A ordem do pós-guerra — com a ONU, o direito internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o regime de não proliferação nuclear — foi uma tentativa de institucionalizar ambas as lições. Esse era o “espaço de experiência” que deveria moldar um “horizonte de expectativa” de paz e segurança coletiva.
A crise de 2025 demonstra que essa institucionalização falhou. A memória da catástrofe foi banalizada, um fenômeno que o historiador François Hartog descreve como nosso regime de “presentismo”: um estado em que o passado é consumido como herança ou trauma, mas já não funciona como um guia que informa e limita nossas ações futuras. A frase “Nunca Mais” tornou-se um mantra vazio, pois recriamos as condições que tornaram a catástrofe possível. Assistimos à dinâmica de 1914 — a escalada não intencional através de alianças e proxies (EUA-Israel; Irã-Rússia-China) — combinada com a dinâmica de 1938 — a presença de atores movidos por ideologias absolutistas que rejeitam o compromisso. A paralisia do Conselho de Segurança da ONU em crises recentes, como na Ucrânia e em Gaza, e o desmantelamento de tratados de controle de armas são sintomas da erosão terminal daquele espaço de experiência.
O que torna essa combinação única é a fusão da tecnologia do século XXI com temporalidades pré-modernas. As guerras do século XX foram, em sua maioria, conflitos seculares por ideologias seculares (fascismo, comunismo, liberalismo). A crise atual reintroduz a guerra de religião no coração da geopolítica global. Uma Terceira Guerra Mundial não seria apenas o fracasso da ordem liberal; seria uma regressão a um estado de natureza hobbesiano travado com armas nucleares. Seria o colapso final da relação entre experiência e expectativa à qual Koselleck se refere, pois a experiência mais terrível de nossa espécie teria sido incapaz de gerar um horizonte de expectativa que não fosse sua própria repetição, em uma escala final.
5. Conclusão: História e Agência no Limiar da Guerra Total
Este artigo procurou demonstrar que a crise de 2025 é o ponto de convergência de processos históricos, geopolíticos e ideológicos de longa duração. A análise, informada pelas teorias de Koselleck, revela um quadro de perigo extremo. A questão não é se uma Terceira Guerra Mundial é possível, mas se as barreiras racionais e institucionais construídas a partir da experiência do século XX ainda se mantêm. A evidência sugere que essas barreiras estão sendo sistematicamente erodidas por atores que operam sob diferentes lógicas temporais e conceituais de segurança e destino.
A colisão entre um império em declínio que aposta no caos, uma potência regional que funde ansiedade de segurança com zelo messiânico, e um bloco emergente que desafia a ordem estabelecida, criou um impasse explosivo. Nesse cenário, os vocabulários da diplomacia são substituídos pela semântica da aniquilação, e os futuros partilhados são obliterados por profecias de vitória final. A “Guerra do Circo do Picadeiro” de Escobar é a manifestação final dessa tragédia: um espetáculo de destruição que mascara o vácuo de uma ordem mundial que perdeu seu rumo e sua memória.
Como historiador, não é meu papel prever o futuro. É, no entanto, meu dever diagnosticar as patologias do presente à luz do passado. A patologia de 2025 é a de uma amnésia histórica voluntária, a de atores que marcham de olhos abertos em direção a um abismo que a história já lhes mostrou. A questão que fica para futuras investigações é se a consciência histórica, em uma era de “presentismo” acelerado pelas tecnologias digitais, pode ainda servir como uma advertência, ou se seu destino é tornar-se, meramente, o epitáfio para um mundo que não soube aprender com suas próprias cinzas.
6. Bibliografia
Bacevich, Andrew J. America’s War for the Greater Middle East: A Military History. Random House, 2016.
Brzezinski, Zbigniew. The Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives. Basic Books, 1997.
Clark, Christopher. The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914. Harper, 2012.
Gorenberg, Gershom. The Accidental Empire: Israel and the Birth of the Settlements, 1967-1977. Times Books, 2006.
Hartog, François. Regimes of Historicity: Presentism and Experiences of Time. Columbia University Press, 2015.
Kennedy, Paul. The Rise and Fall of the Great Powers: Economic Change and Military Conflict from 1500 to 2000. Random House,1 1987.
Khalidi, Rashid. The Hundred Years’ War on Palestine: A History of Settler Colonialism and Resistance, 1917-2017. Metropolitan Books, 2020.2
Koselleck, Reinhart. Futures Past: On the Semantics of Historical Time. Columbia University Press, 2004.
Mearsheimer, John J. The Tragedy of Great Power Politics. W. W. Norton & Company, 2001.
Pappé, Ilan. The Ethnic Cleansing of Palestine. Oneworld Publications, 2006.
Shlaim, Avi. The Iron Wall: Israel and the Arab World. W. W. Norton & Company, 2000.
Sternhell, Zeev. The Founding Myths of Israel: Nationalism, Socialism, and the Making of the Jewish State. Princeton University Press, 1998.3
Tooze, Adam. Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World. Viking, 2018.
Watson Institute for International and Public Affairs, Brown University. “Costs of War.” Acessado em junho de 2025. https://watson.brown.edu/costsofwar/