O solo da história de um partido* – por Florestan Fernandes

O solo da história de um partido* – por Florestan Fernandes

Publicamos em nosso portal entrevista de Florestan Fernandes, que contribui para compreender as características e origens da transição por cima da ditadura à autocracia (muito pouco democrática) brasileira. Além disso, contém reflexões acerca da luta revolucionária em nosso país.

(*) Entrevista concedida por Florestan Fernandes a Juarez Guimarães e retirada do livro “Que tipo de república?” (editora Brasiliense, 1986). A entrevista foi originalmente publicada pelo entrevistador em versão resumida na revista Em Tempo, em junho de 1985.

Como você caracteriza a situação política em que estamos vivendo? 

Florestan – Com o chamado “pacto conservador” entre o PMDB e os setores dissidentes do PDS, tivemos o encerramento de um ciclo e o início de um outro. Houve uma redefinição política da forma assumida pela dominação de classe. As classes dominantes conseguiram superar os obstáculos que minavam a sobrevivência da ditadura e retiravam as suas condições de se reproduzir. Era uma situação dramática para as classes burguesas que, aliás, foi bem percebida por Ulysses Guimarães quando ele disse em uma reunião da Executiva do PMDB em Brasília que ou se ia para o Colégio Eleitoral ou ocorreriam explosões sociais. Os grandes comícios populares adquiriam de forma crescente o mesmo significado da rebelião dos operários nas fábricas, da rebelião dos trabalhadores no campo. 

Era uma situação marcante na história brasileira e que permitiria entender melhor os rumos da história. A qualidade da luta de classes havia se alterado. Nestes últimos vinte anos, principalmente a partir de 1968, o desenvolvimento econômico acelerado contribuiu para modificar tanto a composição quanto os dinamismos de classe no Brasil. A classe trabalhadora urbana cresceu muito e se diferenciou também com o processo de industrialização massivo. A penetração do capitalismo no campo, com a grande empresa agroindustrial e a agricultura moderna, levou a um processo importante de proletarização rural. Foram criadas novas condições de concentração e de manifestação dos trabalhadores em defesa de sua independência de classe, dos seus interesses coletivos. Apesar da ditadura reprimir os movimentos políticos dos trabalhadores, ela não pôde impedir que estas transformações explodissem na cena histórica. 

Poderíamos dizer então que esta mudança na forma de dominação é uma adaptação das classes dominantes a estas tendências mais profundas da luta de classes? 

Florestan – Eu diria que mais do que uma mudança na forma de dominação, houve uma mudança nas relações das classes. Até agora a burguesia conseguiu manter um certo despotismo a nível político, a nível econômico, a nível cultural. Todavia, a capacidade de resposta do proletariado, dos trabalhadores rurais se alterou e é aí que está a chave da questão. Embora o desenvolvimento da independência de classe dos trabalhadores não tenha sido levado às últimas consequências, ele atingiu um patamar histórico alto e muito significativo. Os trabalhadores passaram a se manifestar diretamente contra a supremacia burguesa, que é o conceito que Marx e Engels usam no Manifesto Comunista para designar a dominação de classe. No ABC e nas greves dos trabalhadores rurais, não está em jogo só o nível de salários, mas também os direitos políticos dos trabalhadores, como a liberdade sindical, a liberdade partidária e por aí afora. Estamos vivendo uma nova fase que surge do desenvolvimento da independência de classe e que permite ao proletariado conquistar peso e voz na sociedade civil. É isso o que caracteriza o momento atual. 

E ainda não deu tempo para que estes processos políticos se refletissem na forma política de dominação de classe da burguesia. É isto o que explica como este regime que sucede à ditadura tenta lidar com “luva de pelica” em relação às pressões que vêm de baixo, procurando transferi-las para o futuro, procurando absorvê-las, fazendo o mínimo de concessões. Há uma ambiguidade no comportamento da burguesia e uma ambiguidade no comportamento do governo. 

Aquilo que chamam de avanços democráticos está se realizando não porque os de cima estejam tendo uma compreensão liberal do processo político mas porque eles não têm outro remédio. A pressão de baixo para cima adquiriu tenacidade, continuidade e força. 

Com a formação da “Aliança Democrática”, as classes dominantes construíram uma unidade importante que permitirá ao governo, ao contrário do que ocorria nos últimos anos da ditadura, tomar iniciativas políticas importantes. Que novidades isto traz para a luta de classes?

Florestan – O seu questionamento envolve muitas questões. Quanto à unidade da burguesia, ela não aumentou com a política recente. A derrota da ditadura significa que a sua base social e política estava se fragmentando. A ditadura havia permitido unificar a burguesia. As pressões que levaram a ditadura viver a sua crise final quebraram esta frente. 

De outro lado, ainda que a retaguarda deste regime seja uma retaguarda militar bastante saliente, o momento atual é de muita perplexidade para os vários setores da burguesia. Um governo nascido de uma composição de forças não tem as mesmas facilidades e autodeterminação que o regime que resultava de uma ditadura militar. E o governo que resultou de uma eleição, ainda que seja uma eleição fechada, é um governo intrinsecamente débil porque ele tem de conquistar a sua legitimidade perante a Nação e os diferentes movimentos políticos. Ele tem que provar a sua capacidade de responder a pressões que não podem ser suprimidas pela força, esmagadas. Isso não implica deixar de reconhecer que as classes dominantes naturalmente possuem mais campo para atuar do que, por exemplo, a pequena burguesia ou os trabalhadores do campo e da cidade. 

Neste período de ditadura, as classes trabalhadoras foram privadas de meios de auto-emancipação coletiva que pudessem organizar as suas lutas. Já durante o Estado Novo foi criado um padrão burguês de paz social que instaurou o sindicalismo pelego, ligado ao Estado. De outro lado, os partidos identificados com os interesses das classes trabalhadoras foram proscritos. Então, durante estes últimos anos, os poucos meios organizados de luta cresceram através das próprias lutas do movimento: as comissões de fábrica, a renovação que se deu no movimento sindical – o chamado “novo sindicalismo” -, a tentativa de criar mecanismos capazes de unificar a ação dos sindicatos, etc. O único partido que pôde acompanhar legalmente este processo com identidade proletária foi o PT e, de outro lado, os agrupamentos que se enquadravam dentro do PMDB nem sempre jogaram esta bandeira de luta com mais intensidade. 

Assim, o avanço das classes trabalhadoras foi considerável. Mas ele desemboca no vazio porque neste momento as classes dominantes podem ocupar todo o seu quadro de dominação institucional e as classes trabalhadoras possuem ainda meios fracos de auto-afirmação. 

Você poderia falar mais desta sua visão de um “atraso” na construção dos instrumentos de luta do movimento operário frente às necessidades colocadas pela luta de classes? 

Florestan – É claro que no momento em que a transição do regime se dá por via parlamentar, as classes burguesas podem levar muitas vantagens relativas. Quer dizer, os meios de auto-emancipação da classe trabalhadora têm de ser criados agora, nestas condições. É isto o que deixa a burguesia tão tonta, tão insegura: muitos setores das classes dominantes entendem o que isto significa. E querem impedir que este processo se aprofunde, se consolide. 

Por sua vez, as classes trabalhadoras não estão avançando com ritmos muito intensos, em uma velocidade compatível com as exigências da situação. É uma velocidade pequena em relação ao seu potencial exatamente pela carência de instrumentos institucionais. 

É preciso entender que, sob a ditadura, os principais grupos com identidade proletária – PCB, PCdoB e mesmo o PT – tinham um campo de ação política limitada, sendo que o PCB, o PCdoB estavam mais preocupados com a conquista da legalidade e ainda presos a um esquema, por causa deste objetivo, de colaboração de classes. Assim, a contribuição que eles poderiam dar ao desenvolvimento da independência de classe foi muito menor do que poderia ser. Por sua vez, o PT não define claramente qual é o eixo principal de sua esfera política, qual é o socialismo do PT. Existem várias correntes – comunidades de base, sindicalistas, grupos de extrema-esquerda – e não há uma definição clara de qual é o tipo de socialismo pelo qual luta o PT. 

Então, no conjunto, nós temos uma situação em que os meios organizativos de luta estão abaixo dos problemas com que se defronta a classe trabalhadora. Na medida em que a situação atual permite o aparecimento de novos partidos, a luta política entre estes partidos vai fortalecer a classe. Estes partidos têm de atentar agora para a natureza da situação: o que eles devem fazer não segundo a estratégia do poder burguês mas a partir de uma perspectiva proletária. Nisto, apesar das divisões, das retaliações, do sectarismo, das diferenças ideológicas, a situação atual é muito rica. E ela vai naturalmente compelir estes partidos a uma proletarização de seu horizonte político, vai obrigá-los a se desprenderem ou de uma visão de cauda política da burguesia ou então de uma versão empobrecida de social-democracia. 

Você falou que o movimento operário se apresenta com meios organizativos abaixo das tarefas diante dele colocadas pela conjuntura. Quais são estas tarefas a seu ver? 

Florestan – Há um certo revolucionarismo subjetivo que conduz muitos militantes socialistas e comunistas a considerar como não importante o espaço que a classe trabalhadora possa dispor para se afirmar de uma forma independente, em termos de garantias jurídicas e políticas. Atualmente é muito importante para as classes trabalhadoras que elas possam finalmente dispor de condições para criar sindicatos independentes, capazes de promoverem em escala nacional e em perspectiva internacional a defesa dos interesses dos trabalhadores. É muito importante para os trabalhadores criar partidos efetivamente proletários que lutem pelos interesses dos trabalhadores de forma independente e, ao mesmo tempo, tendo em vista os antagonismos fundamentais entre o capital e o trabalho.

Isso significa que uma das tarefas das classes trabalhadoras está voltada para a consolidação da democracia, não em termos burgueses mas em termos proletários. 

Na América Latina, nós temos uma burguesia ultra-reacionária, resistente aos processos de revolução nacional, de revolução democrática. Assim, a questão da democracia não é uma questão abstrata, filosófica ou ideológica. Ela é claramente uma questão política vinculada à presença das classes trabalhadoras na história. É preciso que tanto o movimento sindical como os partidos políticos que gravitam em torno da classe trabalhadora ou que julgam que são representantes dos interesses desta classe, se proletarizem em limites nítidos. Que eles não sejam partidos de colaboração de classes. 

O outro lado da questão é que não devemos ter uma perspectiva falsamente obreirista. O proletariado avançou muito nos últimos anos, como eu caracterizei há pouco. Mas até pela existência da ditadura, o proletariado teve de avançar de uma maneira relativamente oculta, para abrir o seu espaço. Então, nós temos uma situação curiosa: a presença histórica dos trabalhadores é saliente, é nítida, é forte. Agora, a consciência de classe dos trabalhadores não têm a mesma maturidade, é obscura, é ambígua. Pode-se explicar isso objetivamente pela forma de desenvolvimento capitalista, pelas pressões da burguesia, pela vitalidade dos meios de comunicação de massa no capitalismo monopolista. Há várias explicações convergentes. Mas uma coisa é entender, outra coisa é pensar que os proletários possam ter uma presença política, uma identidade política à altura de suas responsabilidades se os valores, se a firmeza ideológica coletiva dos trabalhadores não se pautarem por uma perspectiva efetivamente negadora da ordem. É preciso que o trabalhador tenha não uma consciência obreirista neutra, mas uma consciência e identidade revolucionárias. Na conjuntura que nós vivemos, portanto, é essencial a difusão do socialismo revolucionário e do comunismo revolucionário. 

Enfim, de um lado, conteúdos proletários na luta pela democracia e, de outro, elementos comunistas, socialistas na consciência de classe dos trabalhadores. 

É claro que não estamos ainda naquela fase da luta pela conquista do poder. Esta fase não é o produto de um milagre nem pode ser criada artificialmente. Ela só pode ser criada através da acumulação de forças, da capacidade que as classes trabalhadoras têm, de um lado, de se organizar de forma independente como e enquanto classe e, de outro, a capacidade de neutralizar a dominação burguesa. A menos que exista uma situação revolucionária e que os processos caminhem com maior rapidez. Mas, caso contrário, é preciso que as classes trabalhadoras conquistem um espaço de luta política organizada para depois crescer como forças capazes de transformar a ordem existente e de criar uma sociedade nova. 

Uma pergunta final. Como você entende que podem ser rompidos os impasses na construção do partido revolucionário hoje no Brasil? 

Florestan – As condições materiais, as condições objetivas para que isto se realize começam a existir na sociedade brasileira. Hoje existe um solo histórico que permite às classes trabalhadoras darem um salto de qualidade. 

Eu creio que se exagerou muito no Brasil a importância primordial do partido. O elemento primordial vem a ser a classe, a consolidação da classe. Só ela pode criar um ambiente, um clima para a existência de um partido proletário. O que explica o grande êxito dos bolcheviques é a existência de uma classe operária que revelou uma grande tenacidade na luta de classes, na luta política. O fundamental eram as condições objetivas para a existência do partido. E estas condições só se dão em termos do desenvolvimento independente da classe e da capacidade dos trabalhadores de estabelecerem certas relações de conflito com a burguesia. Hoje pode surgir no país um partido proletário capaz de cumprir todas as funções, criar condições para o aparecimento de intelectuais revolucionários com vínculos orgânicos com a classe trabalhadora. Por isso é que os problemas de organização são hoje tão importantes. 

Por outro lado, eu acho que nós deveríamos superar alguns obstáculos que herdamos do passado: a tendência ao sectarismo, à luta fratricida entre pessoas que defendem objetivos análogos. O inimigo principal não é o companheiro em ideologia, em atividade política. O inimigo principal é o inimigo principal do proletariado: a burguesia, o imperialismo. Então, é preciso desenvolver uma concepção política mais flexível e mais criativa que desemboque numa possibilidade de fortalecer o movimento operário a nível político. E, principalmente, é preciso adquirir uma maturidade maior em relação ao que aconteceu nas outras sociedades em que houve revoluções. Nós nos dividimos ideologicamente e politicamente pelas fronteiras históricas das revoluções conquistadas e ignoramos a fronteira histórica das revoluções a conquistar. Então, acaba sendo muito mais importante, por exemplo, a luta entre trotsquismo, estalinismo e maoísmo. Embora tudo isso seja muito importante do ponto de vista de uma cultura proletária, do ponto de vista ideológico, nós precisamos ver que estamos no fim do século XX. 

As revoluções na América Latina estão caminhando para um nível político diferente. Se se apanha, por exemplo, o que ocorreu no Chile e o que está ocorrendo na Nicarágua podemos ter a ideia de que a classe operária quer percorrer o caminho de pluralismo político e ideológico, de democracia efetiva, de luta antiimperialista implacável. Não se trata de fazer uma síntese ideológica e política entre correntes diferentes, entre soluções que não podem ser englobadas. Trata-se de conviver politicamente com estas diferenças e fazer com que elas não enfraqueçam a luta de classes do proletariado. 

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