Nem céu, nem inferno: luta de classes!
Por: Bruno Santos
O eterno Twitter mal havia saído do ar, após a decisão do ministro Alexandre de Moraes, e já ecoavam, por todos os lados, vozes histéricas clamando pela manutenção da rede. Embalados pela tão falada “liberdade de expressão”, a crítica partia dos mais diversos cantos: dos bolsonaristas neuróticos, dos liberais legalistas — como era de se esperar — e, acredite se quiser, até de alguns setores do campo revolucionário. E não, não estamos falando do PCO! Aparentemente, o velho passarinho azul conseguiu unir em sua defesa “gregos e baianos”, com o perdão do trocadilho.
Para ser realmente justo, é importante lembrar que, embora a crítica seja generalizada, ela não possui uma fundamentação comum a todos os citados. Os bolsonaristas, por exemplo, fundamentam a crítica em um suposto recrudescimento de um regime de esquerda que só existe na cabeça deles. Não é como se Morais fosse o comissário do povo para o STF, não é mesmo?
Os liberais , por outro lado, afirmam ser perigoso concentrar poderes tão grandes nas mãos de um juiz, enquanto algumas figuras do campo revolucionário sustentam que seria uma restrição à liberdade de expressão dos usuários e que tal medida poderia se voltar contra a própria esquerda em futuro próximo.
O(a) leitor(a), a essa altura, há de concordar que esses argumentos são interessantes. Nós também! E é justamente por esse motivo que, neste artigo, nos dedicaremos a debatê-los e a ponderar: até que ponto eles são válidos?
EXISTE UMA CONCENTRAÇÃO DE PODER EM MORAIS?
Sim, é verdade que, nos últimos 15 anos, o Ministério Público e o STF têm assumido um protagonismo elevado na pauta política. Em um cenário de atrofiamento das decisões e da hegemonia da “política do possível”, consequências diretas da falência da Nova República, o Supremo — e muitas vezes ministros específicos — têm a última palavra sobre a política nacional.
Quantas não foram as vezes em que, devido à apatia do Executivo e à morbidez do Legislativo, foi o Judiciário que deliberou sobre questões como maconha, aborto e casamento homoafetivo? Aliás, estamos vendo essa situação ao vivo no caso das emendas parlamentares, em que o STF age porque o Legislativo não restringirá seu próprio orçamento, e o Executivo tem medo de se indispor com o Congresso.
Inegavelmente o Judiciário é um protagonista. Mas note: só está surpreso e assustado com essa realidade quem ainda acredita em Estado Democrático de Direito, tripartição de poderes e na justiça como mediadora de conflitos. A verdade é que um ministro do STF não é uma pessoa, é um porta-voz de uma classe.
Quando um ministro do Supremo emite uma decisão, não é algo tirado apenas de sua consciência de julgador, como pregam os manuais de direito. Seu voto é a manifestação premeditada de uma fração da classe dominante, que se expressa na forma de decisão judicial. Em outras palavras, não é o Judiciário que concentra poder, mas a classe dominante que utiliza o Judiciário para exercer seu poder sem precisar acionar a burocracia legislativa e o engessado Executivo. Prova desse caráter de classe é o recorde de decisões do STF contra trabalhadores brasileiros.
Sendo assim, faz sentido denunciar o “elevado poder” de Moraes, se na verdade, é a burguesia que exerce tal domínio? A decisão do ministro, em última instância, é a manifestação de uma parcela da classe dominante presente no Estado brasileiro. Só se espanta com isso quem não tem noção do caráter de classe de um Estado burguês.
E é aqui que damos o “pulo do gato” na análise. Neste momento, existe uma nítida fragmentação entre setores da burguesia! Um setor, herdeiro do pacto de 1988, ocupando pontos estratégicos do Estado, e outro, vinculado a facções de extrema-direita, mas afastado de áreas-chave da República.
O próprio Lula diagnosticou essa luta no interior da burguesia, levando-o a apostar em uma frente ampla capaz de desagregar a direita e atrair dissidentes para sua base, como Tebet e Alckmin.
(legenda de imagem: rachas entre a direita ficaram em evidência ainda em 2021 quando ocorre uma desagregação da base bolsonarista na busca por uma terceira via que já nasceu morta)
Deste modo, devemos entender o embate entre Alexandre de Moraes e Elon Musk como uma das várias manifestações do choque entre grupos liberais e reacionários burgueses, onde as big techs são peças importantes deste quebra cabeça. Nos EUA, temos Trump e Kamala; na França, Macron e Le Pen. Sempre o campo mais liberal instrumentaliza o Estado para preservar seu espaço frente à ala mais ligada ao fascismo. Macron, por exemplo, convocou eleições para tentar barrar a extrema-direita e atrair a esquerda para sua plataforma neoliberal, o que, para seu governo, provou ser um erro.
O fato é que a extrema-direita, em todo o mundo, parte para a ofensiva. O objetivo principal é ampliar seu poder político dentro do Estado burguês, configurando uma nova correlação de forças. Diante desse cenário, os social-democratas e liberais reagem de todas as formas para preservar a própria hegemonia dentro da fração burguesa, inclusive no Brasil.
A essa altura, o leitor já percebeu que, em todos os casos, mesmo havendo embates dentro da classe dominante, o poder ainda continua com a burguesia. Portanto, se alguém realmente estivesse preocupado com a concentração de poder em poucas mãos, deveria então lutar pelo fim do Estado burguês, e não por esta ou aquela decisão que um ministro toma.
(legenda imagem: na teoria marxista o estado nada mais é que um instrumento de poder da burguesia. A emancipação popular passaria necessariamente pela tomada do estado burguês e sua própria destruição)
Em vista disso, percebemos que a tese em torno de uma suposta concentração de poder nas mãos de Alexandre de Moraes não passa de um argumento falacioso, alimentado pelo mito de um Estado neutro e acima das classes. Este argumento serve apenas para gerar debates nas emissoras de televisão e, no máximo, render um capítulo em algum artigo acadêmico medíocre, mas nada que seja realmente útil. No entanto, para muitos, isso não representa um problema, já que, no meio liberal, não existe compromisso com a realidade. Tudo o que é produzido nele serve apenas para alimentar a própria fantasia de uma direita que come com “garfo e faca”. Não é o caso de nós, comunistas!
Mas, se o argumento levantado pelos meios liberais não se sustenta, o que podemos dizer sobre os questionamentos feitos por alguns membros do campo revolucionário? Debateremos a seguir.
EXISTE RESTRIÇÃO A LIBERDADE DE EXPRESSÃO?
Enquanto meios liberais vomitavam argumentos canalhas e ilusórios, companheiros de elevado caráter e nas melhores intenções — ficando definitivamente claro com isso que não estamos falando do PCO — armavam suas críticas contra a decisão de Moraes .
Argumenta-se que a decisão afeta a liberdade de expressão e, na prática, se converte em uma armadilha, visto que manipula as massas em torno de um discurso supostamente anti-autoritário da extrema-direita. Defende-se ainda que a esquerda não deveria permitir uma regulação das plataformas que limitasse o direito de navegação dos usuários uma vez que tal decisão poderia no futuro afetar a própria esquerda. Mas questionamos, até que ponto isto é verdade?
Suponhamos que o bloqueio ao acesso do Twitter seja uma incontestável agressão à “liberdade de expressão”. Desde quando tal rede se tornou reduto de tamanha liberdade?
Lembremos aos desavisados: o Twitter, assim como a totalidade das redes gerenciadas por big techs, é um reduto de todas as formas de opressão, servindo como pólo de articulação e divulgação da extrema-direita. Afinal, a disseminação do ódio engaja e movimenta dinheiro.
Não é como se o usuário padrão do Twitter usufruísse de toda a liberdade possível ao emitir uma opinião. Muito menos que tal opinião seria levada aos cinco cantos do planeta, livre de toda forma de repressão e barreiras de classe. Isso é ficção!
O Twitter tem dono, tem agenda própria e gasta tempo, energia e recursos para minar qualquer ação diferente do padrão realizado por grupos de extrema-direita. E aí perguntamos: que liberdade é essa? Experimente fazer uma postagem sobre os crimes de Israel e verás toda a “liberdade de expressão” que os usuários possuem, a mesma que dizem estar em risco.
Temer pelo fim da liberdade de expressão no Twitter seria como ter medo de perder um pênalti pelo Sport Recife na final do Campeonato Paulista. Detalhe: o Sport não disputa o Campeonato Paulista, e eu nem sequer jogo futebol. Faz sentido apavorar-se por algo que não existe? Evidente que não !
A dura realidade é que o Twitter está sendo instrumentalizado pelos oligopólios em favor da extrema-direita na luta pelo poder político em diversos países. Não se trata de direitos dos usuários; aliás, a estes só resta a manipulação do algoritmo. A decisão de Moraes foi uma resposta de uma fração da burguesia a esse grupo; não pela defesa da nação, mas de seus próprios interesses. Sendo assim não podemos falar em ofensa a um direito básico, mas sim em luta de classes propriamente dita, ainda que lateralmente (intra burguesa) .
Mas, se não podemos chamar a decisão de ofensa à liberdade, poderíamos qualificá-la como uma armadilha que fortaleceria a narrativa de autoritarismo difundida pela extrema-direita? Este ponto é inquietante e merece nossa atenção, como debateremos a seguir.
MORDEMOS A ISCA DA EXTREMA DIREITA?
De todos os questionamentos levantados, este se mostra o mais robusto. Parte da premissa de que o Judiciário, ao bloquear plataformas de extrema-direita, estaria fortalecendo a própria narrativa de perseguição e, dessa forma, retroalimentando o movimento.
Devemos admitir: a medida tomada pela Suprema Corte endossa a narrativa delirante em torno da existência de um “Estado autoritário”. Mas note: essa versão fantasiosa foi criada há muito tempo e nunca dependeu de elementos concretos para ser difundida. O fascismo não precisa ter lastro na realidade. Vemos isso no debate em São Paulo. Marçal, a cada transmissão ao vivo, mente da maneira mais absurda, é desmentido ao vivo, e ainda assim é aplaudido, influenciando inclusive no crescimento das intenções de voto.
A atuação política de grupos de extrema-direita não pode ser analisada em sua totalidade sob a luz da racionalidade. Precisamos reconhecer que, em muitos momentos, suas ações flertam com a contradição absoluta.
Em outras palavras: não se trata de um cálculo político onde cada ação levará a um resultado específico. “Se os ministros não decidissem dessa maneira, os fascistas teriam que desconstruir a própria narrativa.” Não é esta situação! Toda decisão seria usada como indício de autoritarismo.
Consequentemente, debater se essa ou aquela decisão alimentaria ou não o discurso bolsonarista torna-se secundário. Além disso, estaríamos sendo antimarxistas se déssemos mais atenção aos efeitos de determinada ação para o universo das narrativas do que na realidade concreta.
Pouco importa, neste caso, se a medida alimentou ou não um discurso. O perigo da extrema-direita segue crescendo, e precisamos encontrar uma estratégia para debilitá-la. Moraes e a burguesia liberal não são nossos aliados nesta luta, mas todo soco trocado entre liberais e fascistas é bem-vindo.
E para aqueles que afirmam que tais socos podem acabar sendo desviados para a esquerda, perguntamos: “quando foi que a esquerda, nestes 100 anos, não sofreu com a repressão”? Ela vai acontecer com Twitter, sem Twitter, com Elon Musk ou Xandão. Isso é luta de classes, e os comunistas devem estar preparados para isso. Não podemos nutrir nenhuma ilusão com a ordem burguesa, nem nos tornar seus fiadores de maneira incondicional. Nosso apoio à democracia burguesa deve ser por conveniência, ocorrendo sempre que ela estiver a serviço de nossa classe. Caso contrário, não derramaremos uma lágrima pelos burgueses que forem atingidos por sua repressão.
Ao dizer isso, o(a) leitor(a) poderá ficar assustado(a) com tamanho “autoritarismo” do redator deste artigo, mas me justificarei com um exemplo hipotético a seguir. Note que, dentro dos valores burgueses, seria extremamente antidemocrático revogar o mandato dos parlamentares bolsonaristas . Do mesmo modo, seria um atentado contra a liberdade de expressão e de imprensa revogar a concessão das redes televisivas que promovem os programas “pinga sangue”. Mas, nestes dois casos, deveríamos nos apegar a valores de justiça burgueses? Há pessoas que não deveriam andar sem algemas, quanto mais realizar discursos na tribuna. Do mesmo modo, há emissoras que realizam um desserviço para a imprensa e para o povo brasileiro. Deveríamos,neste caso, defender direitos burgueses que, na verdade, os acobertam? Quem luta pela liberdade de expressão dos oprimidos enquanto se defende a dos opressores? O discurso de liberdade é muito bonito no universo das narrativas, mas, na prática, quase nunca abrange nossa classe.
Não se deve derramar uma lágrima pela repressão de inimigos de nossa classe, por receio de que a mesma seja usada contra nós. Até porque essa opressão já existe e é muito pior do que descrita nas hipóteses acima. Obviamente, não há o que comemorar!
Hoje Musk foi alvejado com a ferramenta jurídica da burguesia liberal. Amanhã, a burguesia liberal poderá ser alvejada por alguma ferramenta fascista, mas isso não nos cabe. Nossa tarefa primordial é organizar e armar a classe trabalhadora para tomar o poder político, seja quais forem as condições, tanto contra liberais quanto fascistas.
Entretanto, existe uma questão que deve ser levada em conta. Os liberais já escolheram sua arma para golpear a extrema-direita no campo das big techs: a ação judicial. A esquerda ainda não escolheu a sua, e isso representa um perigo. Primeiro que, ao não adotar uma ferramenta de combate, a esquerda corre o risco de ficar dependente das já existentes, que, neste caso, é a legalidade jurídica. Esta ferramenta é perigosa porque só é útil para quem tem o controle do aparato jurídico. Em outras palavras, essa ferramenta só serve à burguesia.
E é aí que encontramos um argumento válido em meio às críticas dos companheiros: a esquerda não pode apostar na censura digital como ferramenta de combate à extrema-direita, não por apreço a essa “liberdade de expressão“, que, como já explicamos, não existe nas redes sociais, mas por sua baixa efetividade. Mais eficaz seria a construção de mídias sociais nacionais próprias, sem vínculo com oligopólios estrangeiros. Esse é o caminho !
CONCLUSÃO
Está em curso uma disputa fratricida no interior das classes dominantes pela hegemonia do poder político, entre setores liberais tradicionais e da extrema direita. Os liberais, em sua maioria, posicionados em pontos estratégicos do Estado burguês, enquanto os fascistas se encontram de maneira mais evidente ligada a oligopólios. É claro que ambos realizam alianças por conveniência, mas tais alianças não diluem contradições. A decisão de Moraes pela suspensão do Twitter é a manifestação dessa disputa na esfera jurídica. No Brasil, a extrema-direita acaba de ser golpeada pelos liberais, mas isso está longe de ser uma vitória do nosso campo.
A medida em nada tem a ver com a concentração de poderes da República nas mãos de Moraes ou com o cerceamento da liberdade de expressão. Quem levanta esses argumentos ou não está bem-intencionado, ou não entende o caráter de um Estado burguês. A medida em suma é um fenômeno da luta de classes.
A esquerda não deve encarar a medida nem como salvação, nem como ultraje. Moraes, assim como o Estado burguês, não são aliados no combate ao fascismo — podem no máximo contribuir com a nossa causa até a página 2 de um longo livro de combates e ataques mútuos. Nossa luta deve ser no sentido de criar uma estrutura tecnológica independente dos oligopólios, popular e nacional. Nesse caminho, teremos uma ferramenta efetiva no combate à extrema-direita no universo das redes e, de sobra, nos afastaremos de qualquer idealismo burguês ainda presente no nosso campo, mesmo que reproduzido na melhor das intenções. Quanto ao senhor Elon Musk, tudo que temos a dizer é: “Go home!“
REFERÊNCIAS
Engels, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Edipro, 2023.
Lênin, Vladímir I. Ulianov. O Estado e a Revolução. Edipro, 2024.
Mascaro, Alysson Leandro. Estado e forma política. Boitempo editorial, 2015.
KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. 2009.