Marighella 2021 – Uma carta de amor e compromisso ao povo brasileiro – Parte 1
“Aqui estou para prestar meu testemunho de admiração a um filho do povo, a um revolucionário, a um patriota que foi até o sacrifício extremo da própria vida na luta pelo ideal que defendia, pela felicidade do povo, pela completa emancipação da Pátria e pelo progresso social”
Trecho do discurso de Luiz Carlos Prestes no funeral de Marighella
O filme de Wagner Moura, que estreou nos cinemas após dois anos de batalhas e censura, não é uma biografia de Marighella, longe disso. É um filme baseado em uma biografia escrita por Mário Magalhães, mas que escolheu retratar apenas a pequena (minúscula, na verdade) parte final da vida deste verdadeiro filho do povo.
Em que pese os vários problemas políticos e teóricos da biografia original, um dos grandes méritos do filme é representar fielmente a figura de Marighella e sua atuação na ALN. As escolhas feitas para retratar a repressão demonstram a complexidade muitas vezes esquecida, ou ignorada, pela esquerda. Os diálogos protagonizados por Bruno Gagliasso com os representantes estadunidenses no Brasil, demonstram muito bem como a burguesia brasileira, assim como o aparato repressivo do país, são dependentes e associados aos Estados Unidos, mas não a mesma coisa. Outra passagem importantíssima é a cena da polícia assassinando “bandidos comuns” antes de adentrar a caça a Marighella. A cena, construída através de um inteligente jogo de imagens, induz a nossa imaginação à relacionar o escárnio dos policiais em relação aos meninos, que têm as mãos amarradas nas costas e a roupa branca suja de sangue, e seus gritos violentos de “preto vagabundo” em meio a um mato alto e florido, aos senhores de escravos e à violência da sociedade escravocrata.
Os agentes da ditadura foram (e assim são também os repaginados defensores do atual regime) defensores dos interesses estadunidenses. Mas estes não fizeram o que fizeram a contragosto ou “dominados”. Apesar dos pontuais desacordos e desconfortos entre as partes, essa fidelidade entre os agentes brasileiros e as necessidades estadunidenses se estabelece justamente porque os interesses próprios são melhor garantidos quando integrados de forma associada e subordinada aos planos do imperialismo ianque para o “seu pátio traseiro”. Para mim, o aparato repressivo, ideológico e os seus agentes foram retratados como são: fisiologistas, desumanos, sádicos, traidores da pátria, racistas e misóginos. Quer prova maior disso? A revista veja decidiu “apurar” verdades e mentiras desse filme, mas, “apurou” apenas o que interessava para distanciar os heróis guerrilheiros da identificação que podiam ter com a população: questionam a cor de pele de Marighella; as cenas humanas e sensíveis com o seu filho; a enorme força ao resistir à prisão no cinema e a invasão das rádios. Ainda, a revista aproveitou o clima pró-Marighella para tentar criar maior antipatia com os comunistas do antigo PCB; e revisar “de forma neutra” a história de sua morte. Nem uma vírgula para rememorar o papel da mídia, polícia, exército e do aparato repressivo nas torturas, ou parabenizar o filme pelo trabalho que cumpre para a defesa da democracia.
Bom, se parece ter levantado menos polêmicas públicas a representação dos “gorilas” da ditadura, a representação da ALN e Marighella tem sido muito discutida e criticada. Há aqueles e aquelas militantes que protestam contra a pouca representação do revolucionário enquanto um revolucionário comunista. Humildemente discordo dessa posição e falarei mais à frente sobre. Outros, certamente contrariados por ver uma representação humana e heróica de um “radical”, tentam desmerecer como “panfletários”, ou “fruto das intenções do diretor”, diálogos corriqueiros de qualquer militante e denúncias mais “extremistas” da desigualdade, opressão e violência policial. Que fique claro, para ambas as posições: ser comunista não é só sobre carregar tatuagens, camisetas e bandeiras com foices e martelos em todos os lugares, muito menos repetir frases abstratas e radicais da história do movimento comunista. Ser comunista é um compromisso de vida com a emancipação do povo brasileiro, e jamais abrir mão disso. Esse compromisso está muito bem representado no filme, para terror dos críticos engomadinhos e colunistas de escritório.
Aliás – sem querer adiantar um debate importante que farei em separado numa segunda parte – a falta de signos comunistas, ou do excesso de patriotismo nas posições dos revolucionários não deve causar espanto. Não cabe “analisar discursos” ou fazer uma “análise das intenções” que teve Wagner Moura ao representar e disputar – corretamente – os símbolos nacionais do nosso país. Não sei o quanto o diretor, por mais comprometido que seja, compreende dos profundos debates estratégicos e da história do movimento comunista. Mas a grande representação desse caráter nacional e por vezes democrático da organização guerrilheira coincide também com o debate que ocorria na época.
Este é um debate antigo, no qual certamente Marighella estava mais avançado que as direções do PCB e esmagadora maioria dos partidos comunistas do período. Mas, mesmo assim, o “Agrupamento Comunista” (nome original), que se tornou Aliança de Libertação Nacional – ALN, flertava com a posição, mas não apresentava em seus documentos e resoluções, do caráter socialista da revolução brasileira. É diferente ser comunista e por meio da guerrilha querer mudar o regime que se vive – até possivelmente construindo instrumentos de poder -, e ao construir um novo regime aplicar medidas de caráter socialista. Para aqueles que não estão familiarizados com esse debate, os comunistas por muitos anos entendiam que a revolução brasileira deveria ter um caráter nacional e anti-imperialista, mas que não havia condições objetivas para a construção do socialismo no país. Ou seja, era necessário, em uma primeira etapa, realizar uma revolução burguesa clássica para desenvolver o capitalismo, que compreendiam a época não estar desenvolvido. Importante citar, que o diálogo de expulsão do Partido representado entre “um membro do PCB e Marighella”, que trata também das condições para revolução, não tem nada a ver com isso. Uma coisa é a revolução por guerrilha, outra o caráter socialista de uma revolução. Mas esse papo fica para quem se interessar, na segunda parte.
Para mim, o maior mérito do filme está na capacidade de envolver e apresentar a não militantes o compromisso de vida que é a militância comunista. Independente de não retratar a maior parte da vida e atuação política de Marighella, ou de retratar apenas uma pequena parte do GTA (Grupo Tático Armado) e menor parte ainda dos quase 5 mil membros ou colaboradores da ALN; independente dos erros políticos e teóricos que o filme herdou do livro de Mário Magalhães, Wagner Moura representou guerrilheiros comunistas como lutadores humanos, com angústias, problemas e dificuldades que vivencia também a maior parte do povo brasileiro. São essas as pessoas que enfrentaram a ditadura. Somos nós, militantes herdeiros de todos os erros e acertos do movimento popular, que assumimos um compromisso de vida com a emancipação do nosso povo. Foram Marighella, Gregório Bezerra, Anita Prestes, Luiz Carlos Prestes, Elisa Blanco, Jorge Amado, Jacob Gorender e tantos outros que enfrentaram as coisas mais difíceis da vida comum e, ainda assim, desafiaram inimigos violentos, inescrupulosos e vinculados ao que há de pior no Brasil e nos Estados Unidos. E se eles viviam o que vivemos nós, sofriam com o que também sofremos, qualquer brasileiro oprimido e explorado pode se tornar o próximo a assumir esse compromisso. Essa é a possibilidade que aterroriza as classes dominantes, que por meio de seus políticos, professores, jornalistas, policiais e demais lacaios tentam a todo custo reprimir.
Durante séculos os donos do poder representaram como máquinas insensíveis aqueles que ousaram defender a maioria do povo e enfrentar os regimes de minorias. Desde as caracterizações como “animais violentos” das lideranças das rebeliões de escravos em todo mundo, passando pelos ditadores “durões”, dogmáticos e intocáveis como caracterizou-se Stálin, Prestes, Mao e muitos outros dirigentes de partidos comunistas, até os terroristas membros da ALN, sempre tentou-se distanciá-los da realidade e do dia a dia do povo. Querem apagar a raiz humana, os conflitos e erros da vida cotidiana que as grandes lideranças populares também viveram. É claro que, sobretudo nós comunistas, colocamos a vida física à disposição da luta e objetivos maiores. Mas, se, às vezes, pela inexperiência e força de vontade, os jovens fazem isso de forma pouco pensada, assumindo riscos evitáveis em nome da abnegação, o filme demonstra o peso e gravidade que tem quando um compromisso de vida encontra a política de morte das classes dominantes. Essa obra mostrou os revolucionários como heróis do nosso povo, mas heróis humanos.
O que dizer da escolha de retratar um jovem guerrilheiro amarelando em uma ação revolucionária? Ou de retratar na mesma cena a pressão e nervosismo de um jovem pelo tamanho da tarefa que estava prestes a cumprir, que o levou ao ponto de espancar e apontar uma arma para um irmão camarada? O que há de mais humano em um dirigente guerrilheiro, senão quebrar todos os protocolos de segurança para levar dinheiro à sua família e ver seus filhos e, ainda assim, enxergar nos olhos da sua esposa o cansaço, desgaste e raiva de ter sido abandonada sozinha com as responsabilidades familiares e domésticas? Tem algo mais caricato dos aprendizados normais da vida jovem, que uma guerrilheira enfrentar de forma vitoriosa no dia-a-dia policiais altamente armados, mas precisar pedir ajuda para a mãe, e não conseguir nem mandar embora uma vizinha enxerida, quando um camarada está à beira da morte? Essa é, também, a humanidade dos revolucionários. Pessoas de carne e osso que erram e acertam, em todas as partes da vida.
Não tenho dúvidas que hoje faltam quadros com a capacidade de Marighella, mas existe um exército de militantes que assumiram exatamente o mesmo compromisso de vida que o preto assumiu. Essas dores da vida, retratadas nos guerrilheiros da ALN, igualmente nos dóem. Dói abrir mão de passar mais tempo com a nossa família. Dói perceber que a nossa vida se tornou inconciliável com a vida de pessoas tão queridas por nós. Dói não ter todo o tempo que gostaríamos (e precisamos!) para aqueles que amamos, para nossos alunos, colegas, amigos, para nossa faculdade, e tantas coisas maravilhosas que a vida tem para dar.
Se você assistiu Marighella e chorou emocionado por tamanha abnegação, por tamanho compromisso com o nosso país e os nossos problemas, tenha certeza que aquele seu amigo, filho ou irmão comunista tem o mesmo compromisso.
Nós, comunistas, choramos pela coragem de Marighella, mas também nos emocionamos ao nos identificarmos com a dor que é assumir o compromisso de lutar contra inimigos deste tamanho. O retrato de um guerrilheiro morrer gritando pelo país não é “panfletário”, aconteceu de verdade, e representa quanto amor os comunistas têm por todos, independentemente das escolhas de vida que fizeram.
O filme de Wagner Moura é, para mim, uma carta de amor e compromisso ao povo brasileiro, que cumpre a incrível função de humanizar os dilemas e dificuldades dos militantes comunistas da época da ditadura, e por conseguinte, também dos que hoje assumiram o compromisso de tomar a frente e lutar. Lutar por comida no prato, lutar por moradia para todos, pelo fim da exploração. Sobretudo, lutar por uma outra sociedade, que será mais justa e humana, inclusive para aqueles que ainda não enveredaram por esse caminho.
Cumpre com um papel fundamental de propagandear os verdadeiros heróis do nosso país, e solidarizar todos e todas com as dores e compromissos dos lutadores que hoje estão na linha de frente.
Que Marighella nos motive a entrar de cabeça na vanguarda da luta por uma outra sociedade, e se não tanto, que dispute corações e mentes para apoiar como for possível aqueles que tomaram essa decisão.
LP – Militante da Juventude Comunista Avançando e do Polo Comunista Luiz Carlos Prestes