A urgente reforma das polícias militares
A única maneira de afastar os policiais das milícias, do fascismo e aproximá-los dos trabalhadores
Por: Giovanny Simon
O caso do senador Cid Gomes que foi baleado depois de tentar furar o bloqueio organizado por policiais militares em Sobral no Ceará levanta uma questão ao debate: a infestação de facções criminosas, terroristas e de extrema-direita no interior das polícias e das Forças Armadas do Brasil.
Há quem invoque o direito de legítima defesa para inocentar alguém que queira se proteger da investida de uma retroescavadeira. Mas se pudermos por um momento abstrair esse acontecimento e nos concentrarmos nos eventos precedentes, isto é, um grupo de policiais amotinados, mascarados e armados, que se recusam a voltar ao trabalho, forçam o fechamento do comércio, mesmo depois terem sido bem-sucedidos em conseguir reajuste salarial em um contexto de recessão. Há aí uma perigosa tendência de experimentação fascista de uma greve em um contexto em que as forças militares são os pivôs de um governo neofascista.
Os comunistas serão os primeiros a defender o direito de greve de qualquer setor do proletariado. Mas uma greve nunca está descolada de um contexto histórico e político particular e a análise, para não cair no purismo, precisa ser situada devidamente numa totalidade.
Há muito tempo as polícias e setores das Forças Armadas cumprem um papel de repressão ostensiva mesmo no seu enquadramento funcional “legal” (ainda que ilegal), mas complementam o serviço às classes dominantes através de violência extra-oficial. Já em 1962, um grupo denominado MAC (Movimento Anti-comunista) de um ataque terrorista, plantando um bomba-relógio com 10 bananas de dinamite no pavilhão da Exposição Industrial Soviética realizada em São Cristóvão naquele ano. A bomba falhou, ainda bem. Tal dispositivo certamente não mataria comunistas que, pela lógica de tal movimento, merecem ser mortos, mas sim inúmeros inocentes, incluindo crianças. Mais tarde, continuadores do tal movimento seriam os autores do famoso atentado Rio Centro de 1981, foi armado para parecer obra da esquerda e justificar a continuidade da política de tortura de extermínio da Ditadura que já estava nos seus anos de distensão. A bomba explodiu no colo do milico terrorista.
Depois do golpe, o CCC, Comando de Caça aos Comunistas que incluía civis e militares, também praticou violência esquadrista, espancou o elenco da peça Roda Viva (1968), terrorismo com atentado a bomba (1968) e sequestrou e torturou o bispo católico Dom Hélder Câmara (1969).
Como vemos, por vezes, não basta que estejam eles com um representante da caserna no Palácio do Planalto. A tradição de facções criminosas de extrema-direita encrustadas nos quartéis é algo histórico e ganha, hoje, uma nova face com o fenômeno das milícias que tem ligação direta com o Presidente da República.
Não quer dizer que todas as manifestações militares tenham sempre um caráter reacionário. Nem sempre os militares foram polo da reação no Brasil. Vide a Revolta da Chibata em 1910, movimento combativo dos marinheiros negros que continuavam sendo castigados corporalmente mesmo depois de 40 anos da abolição da escravidão, ao ponto de terem que bombardear a capital federal para encerrar esse abuso histórico. O Movimento Tenentista na década de 1920 tinha um caráter pequeno-burguês, mas progressista diante da república oligárquica. O levante anti-fascista de 1935 foi predominantemente organizado nos quartéis. A própria existência da Força Expedicionária Brasileira (FEB) é acúmulo de uma luta antifascista histórica que tomou, então, proporções internacionais. A Revolta dos Sargentos de 1963, apesar de certa maneira, inoportuna, refletiu o acúmulo político e programático desse setor que inclusive participara da Campanha pela Legalidade de 1961. E muitos militares que se opuseram ao golpe reacionário de 1964 foram perseguidos, torturados e mortos (vide o documentário Militares pela Democracia).
Mas as polícias militares deveriam cumprir uma função constitucional diferente das FFAA, embora sua história esteja muito próxima da história militar como um todo.
A Polícia Militar está entre as instituições que compõem a política de segurança pública no Brasil, mas diferente da Polícia Federal e da Civil, está submetida ao exército como força auxiliar e por essa razão mantém estrutura interna semelhante, não apenas no uso de uniforme, coturnos e na nomenclatura das graduações (soldado, cabo, sargento), mas organização interna, profundamente hierarquizada e antidemocrática.
Os policiais militares são legalmente proibidos de participação política de qualquer espécie, privados até do direito a organização sindical e de greve, segundo seus regulamentos um comentário qualquer sobre tais assuntos pode gerar detenção. As mesmas regras não se aplicam a Civil e a Federal, que constituem sindicatos e tem o direito legal de debater assuntos diversos de seu interesse, como qualquer categoria.
As normas internas da PM de cada estado da federação são ditadas por Código Disciplinar Militar, na absoluta maioria dos casos inalterados desde sua primeira redação centenária. Essa normatização interna da PM estabelece a existência de dois setores tão diferentes que instituem espécies de castas. Os oficiais seriam “verdadeiros agentes da segurança pública” e os praças são descritos oficialmente como meros “elementos de execução”. Essa hierarquização afasta a PM das demais instituições de segurança pública e está associada a sua particularidade em relação às outras. Enquanto Civil e Federal tem foco investigativo, a PM é caracterizada pela aplicação da força bruta e o exercício da repressão à setores da população civil em contradição com a lei, tanto criminosos que oferecem perigo a vida de terceiros, como movimentos sociais que denunciam e protestam contra o Estado, mesmo que sem desobedecer as leis.
Os oficiais (tenente, capitão, major, tenente-coronel e coronel) têm o monopólio da decisão e do comando em todas as ações e em cada função, são eles inclusive quem compõem e aplicam processos disciplinares e a Justiça Militar. Os praças (soldado, cabo, sargento e sub-tenente), segundo regulamento, são proibidos de emitir opinião, questionar ordem dada e mesmo denunciar crime dos superiores, sem prévia autorização dos superiores, no caso concreto de uma denúncia acontecer o praça que faz a denúncia contra um oficial pode ser também penalizado por crime militar. O treinamento de soldados e cabos chega a ser descrito nesses regulamentos como “adestramento”. As FFAA têm função de defesa territorial numa situação hipotética de guerra, ou seja, uma instituição preparada e treinada para matar. Diferente disso a PM tem por função a segurança pública, preservação e defesa da integridade física e patrimonial das pessoas, deveria ser uma instituição ligada a proteção da vida, portanto, sua estrutura deveria ser, no mínimo, tão democrática e aberta quanto PC e PF. Ao se estabelecer com a estrutura de mando atual a PM se torna uma instituição aonde um setor altamente remunerado e presente na vida dos poderes estaduais e regionais (todo órgão do Judiciário e legislativo estaduais possuem uma Casa Militar aonde um alto oficial se relaciona com esses poderes) e outro preparado e disciplinado para cumprir ordens, sejam elas quais forem. O praça da polícia militar não tem liberdade, pode ser acusado e condenado por um oficial por qualquer motivo, é explorado como qualquer outro trabalhador, mas impedido de se organizar, debater e opinar sobre sua atividade profissional, mantido numa estrutura em que a função da instituição a qual pertence o coloca em antagonismo com sua situação de classe.
Na história recente, desde pelo menos 2002 policiais militares passaram a fazer greves no Brasil, ainda que com direções conservadoras. A solidariedade de setores do sindicalismo produziu uma aproximação tímida que chegou a ter certa influência nas associações da categoria. Eles formaram associações (“não-sindicais”), realizaram diferentes tipos de movimentos reivindicatórios, elegeram deputados e vereadores que podiam falar nas tribunas parlamentares contra o oficialato sem serem presos ou repreendidos. Tiveram vitórias e ganhos econômicos. A ANASPRA (Associação Nacional dos Praças) por muito tempo levantou a bandeira desmilitarização de democratização das polícias. Em Santa Catarina, os praças da APRASC deram demonstrações de coragem, solidariedade consciência avançada nos movimentos de 2008-2009. Os Bombeiros Militares do Rio sofreram dura repressão depois de reivindicarem melhores salários.
É preciso observar cada caso com atenção para não cometer erros de julgamento e generalizações ahistóricas.
Mas isso tudo precede a ascensão do bolsonarismo que é hoje o principal fiador da ideologia predominante nos meios militares. Muitas dessas entidades e lideranças do passado se transformaram ou foram tomadas por grupos de extrema-direita bolsonaristas.
Shafik Handal, grande liderança comunista Salvadorenha, defendia que o fascismo na América Latina possui certas peculiaridades pois aqui temos uma burguesia servil e incapaz de unir os de baixo por um projeto nacional autônomo. A forma particular de fascismo em países dependentes, portanto, também reflete esse servilismo e carece de um partido de massas que possa servir como centro de difusão ideológica. Quem assume o lugar desse partido são as forças armadas. Treinadas pelos EUA para aplicarem a doutrina do “inimigo interno” e da “segurança nacional”, com um corpo político e ideológico estável há décadas, disciplinadas e revestidas de uma retórica “nacionalista”. Eles projetavam uma ideologia particular extremamente demagógica que sintetiza muitos aspectos distintos já longamente analisados (cristianismo, anticorrupção, nacionalismo, etc) e conseguiram sair da caserna com uma narrativa renovada e revanchista com a eleições de Bolsonaro em 2018.
É preciso sempre refletir: o projeto de Bolsonaro para o Brasil é um projeto ditatorial abertamente policialesco, fascista e reacionário. Ele ainda está procurando uma maneira de se livrar da oposição de direita tradicional e exterminar a esquerda livre e impunemente. Isso ocorre por uma razão muito simples: o programa de Bolsonaro que coincide com o programa do imperialismo é incompatível até mesmo com o atual regime de democracia de fachada que vivemos.
Independente da questão sobre a legitimidade ou ilegitimidade da greve, os desdobramentos podem e serão explorados politicamente por diversos setores. Por parte do governo Bolsonaro e da cúpula militar-golpista que está obcecada por estabelecer um regime abertamente policialesco, o episódio pode ser usado para vários propósitos: insuflar desobediência de militares, premiar comportamento insubordinado de policiais contra governadores adversários, analisar a repercussão do fato e medir a temperatura da “opinião pública” para testar os limites do estado.
Dessa forma, é preciso um amplo repúdio contra o fato e uma enérgica exigência de punição dos envolvidos. Mas é preciso que compreender que a política de “passar o trator” não é efetiva e nem tem duração de longo prazo pois o problema é estrutural.
Os comunistas e revolucionários do Brasil devem se esforçar para constituir uma Frente de Esquerda com programa socialista que inclua a defesa de reformas democráticas principalmente nas instituições militares que há décadas são controladas pela extrema-direita, recebem doutrinação intensa do fascismo estadunidense, e esmagam os militares de baixa patente. É possível que haja espaço, nesse campo, para uma unidade de ação com setores da oposição de direita, mas isso depende mais desse setor avançar no seu programa, do que a esquerda recuar do seu.
Os praças são esmagados cotidianamente pelos seus oficiais que conformam uma oligarquia corrupta e reacionária dentro da corporação. Uma reforma das instituições militares é única maneira de isolar o fascismo dentro das polícias, tornando-as permeáveis aos debates francos, abertos e democráticos feitos pelo conjunto das classes trabalhadoras e permitindo o direito a sindicalização e livre associação, trazendo as contendas trabalhistas e econômicas para o terreno da luta democrática antes que se tornem explosivas o suficiente para entrar no terrorismo e na violência de facções. O caso do Ceará demonstra claramente esse impasse. O erro do poder público, incluindo aí a correia de transmissão da família Gomes, foi trabalhar para suprimir as associações de policiais militares (17 de fevereiro) que mediavam o movimento reivindicatório, afogando o canal de diálogo democrático e abrindo espaço para o ascenso do banditismo miliciano. A política equivocada converteu uma reinvindicação econômica em trincheira política e incendiou os setores radicalizados da extrema-direita, ofuscando a luta legítima por reajustes salariais. Alienar o movimento reivindicatório dos sindicatos é uma política essencialmente de direita, cujo efeito na corporação militar é de afastamento dos policiais do restante do proletariado e da esquerda em geral, que tem influência no movimento sindical.