A serpente troca de pele: a fascistização do golpe no Brasil e a estrutura autocrática do Estado

A serpente troca de pele: a fascistização do golpe no Brasil e a estrutura autocrática do Estado

Nota Política do Polo Comunista Luiz Carlos Prestes

O sistema do capital tem encontrado obstáculos para o seu desenvolvimento que são oriundos de sua própria crise estrutural. É exatamente por isso que o imperialismo, dirigido sobretudo desde os Estados Unidos, recorre a soluções autoritárias, fascistas e fascistizantes dentro e para além de seu território. Neste contexto é que é possível compreender a ascensão de governos de extrema direita em diversos países do mundo, na Europa ou na América Latina. Praticamente em todos os casos é possível identificar algum nível de intervenção articulada pelo imperialismo, tendo tido imenso destaque a intervenção de órgãos de espionagem ou de tipo paraestatal (Steve Bannon, Think Tanks, etc.). Vale tudo para enfrentar as tendências regressivas impostas pela depressão econômica rastejante típica de um capitalismo senil. Estamos tratando, portanto, da política internacional do capital em seu período de crise estrutural. Ela é violentíssima e extremamente perigosa.

Mas não se trata apenas da tentativa de conter a instabilidade gerada pela crise. Não estamos falando de um movimento meramente defensivo de parte do grande capital internacionalizado. Trata-se sobretudo de uma ofensiva que visa à expropriação das riquezas dos países satélites, especialmente na América Latina. Esta ofensiva que inclui a expropriação das riquezas naturais traz uma série de vantagens econômicas que compensam em parte  o desastre econômico gerado pela acelerada queda nas taxas de lucros do capital. Daí que, do ponto de vista político, o movimento operado pelo capital em crise ganhe um caráter tão violento que inclui o recurso ao fascismo: o terrorismo do capital financeiro e o Estado de exceção são a ordem do dia aonde quer que haja condições para a sua implementação.

No Brasil acompanhamos esse movimento desde 2016, quando se consolida um processo golpista que segue seu curso até hoje, tendo um claro movimento de continuidade no governo fraudulentamente eleito de Jair Bolsonaro. Está claro que, por mais nefasto que esteja sendo este processo golpista no Brasil, há por parte de Bolsonaro intenções ainda mais radicais, que exigiriam o golpe dentro do golpe, num movimento que culminaria em um regime abertamente fascista e terrorista. Importante destacar que o conteúdo dessa fascistização está perfeitamente alinhado com os interesses imperialistas, monopolistas e latifundiários, incluindo o extermínio dos direitos sociais e trabalhistas e o completo entreguismo em termos de política internacional e controle dos recursos naturais.

O golpe no Brasil tem características que somente confirmam o que temos dito até agora: a direita radical pró-imperialista usou e segue usando todos os artifícios que têm ao seu alcance para aproveitar os momentos de fragilidade da democracia tutelada e incompleta que se consolidou no Brasil. Utiliza-se dessas fragilidades para reforçar o caráter autocrático do Estado dando a ele um sentido fascistizante. Foi assim o primeiro ato do processo golpista, iniciado em 2013. Nas vésperas da Copa do Mundo e das eleições presidenciais a massa do povo brasileiro sai às ruas levantando bandeiras justas de reivindicação, mas perde o controle de seu próprio movimento a partir de uma virada de mesa na direção dos protestos operada com mecanismos já experimentados anteriormente na chamada Primavera Árabe. Não se deve, contudo, menosprezar os elementos de fragilidade próprios da democracia brasileira, como a corrupção do poder judiciário e a manipulação midiática operada sobretudo pelos grandes canais de televisão.

Numa ofensiva articulada contra uma série de países latino-americanos os Estados Unidos conseguem, nessa segunda metade da década de 2010, dar um forte revés em um processo iniciado na segunda metade da década anterior (2000), quando o projeto da ALCA é amplamente rejeitado em Mar del Plata (2005) e se inicia uma nova fase no processo de tentativa de articulação latino americana.

Ainda assim, do ponto de vista econômico o caráter dependente do desenvolvimento capitalista só se fortaleceu na América Latina. Se por um lado podemos falar no crescimento da integração política com a derrota da ALCA, por outro aprofundou-se a desindustrialização e o caráter primário exportador das economias latino-americanas. Hoje o que se vislumbra é uma recessão generalizada para o futuro próximo na América Latina, a depender dos desdobramentos da guerra comercial EUA-China, que têm como centralidade a questão do comércio mundial de commodities.

A política econômica adotada pelo governo Bolsonaro em nada contribui para contornar essa situação. A exemplo de todo o conjunto de anti-ministros desse governo, Paulo Guedes atua com uma política de destruição da economia nacional, ao invés da sua defesa. A única “qualidade” de Paulo Guedes, que o levou a se tornar ministro, é ser totalmente subserviente à cartilha do imperialismo.

O fascismo e o pró-imperialismo estão no DNA deste processo golpista no Brasil, sendo importante destacar o papel do poder judiciário, que portando a bandeira do combate à corrupção como elemento de legitimação perante as massas desenvolve uma política abertamente nazista, de utilização do judiciário para o combate aos inimigos internos da nação. Isso associado ao pró-imperialismo impregnado nos quadros que estiveram o tempo todo à frente da Operação Lava Jato, com destaque para Sérgio Moro, sujeito treinado exaustivamente nos órgãos de espionagem estadunidenses. Importante lembrar também que a votação do STF que na prática vetou uma candidatura de Lula para a presidência em 2018 foi precedida por uma ameaça pública de golpe militar feita pelo general Villas Bôas, lida solenemente no encerramento do Jornal Nacional (Rede Globo).

É importante ter clareza sobre a agenda comum que unifica os governos Temer e Bolsonaro, e que portanto confere à sua sucessão um forte caráter de continuidade e aprofundamento, podendo-se falar ainda em um único “golpe em curso”, mesmo depois de vários anos de desdobramentos. A começar pela própria eleição de Bolsonaro, evidentemente fraudulenta sobretudo pelo escandaloso esquema de fake news, mas que passou por vista grossa do poder judiciário, interessado em sua vitória. Mais importante ainda, contudo, são as políticas aprovadas no Congresso ou por decreto, que têm todas o mesmo conteúdo político: entrega dos recursos naturais (sobretudo o pré-sal e a Amazônia) e destruição dos direitos sociais e trabalhistas garantidos pela Constituição de 1988. Tudo isso foi iniciado por Temer, ou até mesmo antes, quando o governo Dilma, agonizando, já antecipou algumas medidas, e segue na pauta até hoje, sendo aprovado em ritmo cada vez mais acelerado.

Trata-se de uma agenda que só pode ser implementada tendo nos bastidores um forte aparato repressivo montado. Na medida em que avança a implementação da agenda golpista, a exigência pela intensificação da repressão avança junto. Joga-se assim cada vez mais água no moinho do projeto bolsonarista (ou bolsonazista) de perpetrar um golpe dentro do golpe, instaurando um regime abertamente de exceção, ditatorial. Certamente esse projeto mais radical não tem adesão de todas as frações burguesas que atuam no Brasil, mas o fato de todas estarem unidas em torno de uma mesma agenda regressiva que tem sido levada a cabo pelo governo Bolsonaro contribui imensamente para que a sanha fascista se fortaleça mais e mais.

O fato é que já se pode falar em um novo regime no Brasil, pois a Nova República iniciada com a redemocratização, cheia de fragilidades, já está praticamente esfacelada pelo golpe. É importante frisar que não seria correto supervalorizar essa nova república que agora se encontra em declínio. Ela foi importantíssima, sem dúvida, mas jamais fugiu ao controle das classes dominantes e sobretudo do imperialismo. As importantes conquistas democratizantes obtidas ao longo desses trinta anos, sobretudo no marco da Constituição de 1988, são a expressão daquilo que os de baixo conseguiram impor às elites, e não nenhum tipo de concessão ou movimento democratizante oriundo do desenvolvimento ou amadurecimento do capitalismo no Brasil. O desenvolvimento do capitalismo no Brasil é dependente e autocrático. A contrarrevolução preventiva, muito bem caracterizada por Florestan Fernandes, pressupõe um Estado de exceção permanente, que por vezes se torna oculto, mas jamais desaparece. Trata-se de um movimento preventivo ao extremo, cujo alarme soa ao menor sinal de desobediência, não havendo espaço para nenhum tipo de soberania ou autodeterminação nacional.

Este Estado autocrático não pode ser transformado por dentro apenas com a sucessão de alguns governos mais bem intencionados e à esquerda. Derrotar nas urnas os candidatos alinhados com o bloco de poder dominante é importante, mas é fundamental compreender que o poder burguês no Brasil está muito para além do poder executivo e seus governos eleitos com ou sem fraude. Ele está inclusive para além dos três poderes, uma vez que sobre os três paira ainda um quarto poder, militar, cuja tutela foi garantida pela inclusão do artigo 142 da CF em 1988. Ainda mais grave do isso: temos no Brasil (assim como em praticamente toda a América Latina) um bloco de poder hegemônico composto por frações dentre as quais uma das mais poderosas e influentes – capilarizada de uma forma ou de outra em todas as frações e poderes do Estado – é o imperialismo, ou seja, um agente externo poderosíssimo que hegemoniza também a dominação interna.

Somente a constituição de um poder paralelo que possa suplantar o Estado autocrático burguês no Brasil é que teria condições de superar o desenvolvimento capitalista dependente que só tem miséria e repressão a oferecer para o povo. Isso só se faz com organização popular de baixo para cima, com a construção de instrumentos de poder popular efetivos, que possam fazer frente às mais terríveis ameaças intervencionistas, exemplo que de algum modo podemos observar atualmente na experiência venezuelana.

Este poder, contudo, precisa ter clareza de quem é e de como opera o inimigo a ser enfrentado. É necessário, portanto, orientação estratégica adequada, que não alimente ilusões com relação às possibilidades de transformação efetiva por dentro da ordem. Diante de um Estado estruturalmente comprometido com a forma dependente de desenvolvimento não há solução possível por dentro do capitalismo. Somente a construção do socialismo pode resolver permanentemente os problemas do povo brasileiro.

Direção Nacional do Polo Comunista Luiz Carlos Prestes

Brasil, janeiro de 2020.

2 comentários sobre “A serpente troca de pele: a fascistização do golpe no Brasil e a estrutura autocrática do Estado

  1. Um país totalmente tomado por aqueles denunciados nesta verdadeira crítica ao status existente, não vislumbro como resistir a tudo isso. Não há lugar no mundo em que haja pelo menos uma perspectiva da utopia do socialismo pregado. Lamento.

    1. A perspectiva do socialismo continua viva enquanto a luta de classes for uma constante. Não podemos subestimar a capacidade de luta dos povos que certamente encontrarão os caminhos para a emancipação humana.

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