Lula no cárcere: comentários sobre sua entrevista
Diante da entrevista do ex-presidente Lula, ilegal e injustamente no cárcere desde o ano passado e considerado uma importante (ainda que contraditória) liderança popular, o Polo Comunista Luiz Carlos Prestes apresenta abaixo breves comentários sobre o conteúdo de sua fala.
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Lula sabe falar com o povo. Os primeiros minutos da entrevista foram os melhores. Mostrou que o “impeachment” e as arbitrariedades dos processos e condenações contra ele eram parte de um mesmo projeto golpista. Está envidentemente na ofensiva: atacou a Lava Jato (Moro/Dallagnol), o Departamento de Estado dos EUA, o TRF-4 (“juízes que nem leram o processo”), atacou também o STF, inclusive lamentando a proibição de “dar esta entrevista antes da eleição de 2018”; mas teve o cuidado de defender o Supremo como instituição (destaca as decisões do casamento homoafetivo, demarcação da raposa da Serra do sol), sabendo que o governo do Boçalnazi o quer submeter de modo total e, se tiver força, até o fechar.
Na política interna centrou corretamente no ataque: 1) à entrega do Pré-Sal, riquezas naturais e empresas públicas; 2) à Reforma da Previdência (com detalhes bem escolhidos, denunciando o governo que “esconde dados” que “interessam à milhões” para “favorecer os bancos”, etc.); 3) à política recessiva do Guedes de arrocho salarial desmonte dos serviços públicos e dos direitos, etc. Fechou bem, após 2 horas, denunciando que governo está “destruindo tudo o que nós conquistamos e construímos”. Afirmou que “quem coloca os Ministros que ele escolheu é porque é lacaio dos EUA”, “não gosta da educação e saúde”, “não gosta do povo, tira direitos, diminui os salários”, etc. “A hora de lutar é agora”! O “pessoal da educação tem que se mobilizar, tem que ir para a rua protestar”, o povo tem que pressionar os deputados “lá onde eles moram”.
Na política internacional: desqualificou o “Templário” Ernesto Araújo das Relações Exteriores (“como o Amorim permite um cara desses no Itamarati?”), o absurdo do Brasil passar a hostilizar a China, mas perdeu uma valiosa oportunidade de defender os BRICS). Vez por outra, Lula trazia experiências internacionais “bem achadas” para reforçar seus argumentos, mostrando o peso internacional que o Brasil adquiriu. Falou muito bem na defesa das instituições multilaterais da América do Sul, para “formar um bloco” que aumentasse “nossa força nas negociações internacionais”: o Mercosul (“o maior parceiro” brasileiro, que o Guedes despreza), o grande avanço geopolítico da Unasul (que está sendo assassinada e enterrada pelos “lacaios” Boçalnazi, Duque, Macri e Piñera), o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) sem os EUA (inclusive em resposta à ativação da 4ª Frota), etc.
“No dia em que eu sair daqui, eles sabem, eu estarei com o pé na estrada. Para, junto com esse povo, levantar a cabeça e não deixar entregar o Brasil aos americanos. Para acabar com esse complexo de vira-lata. Eu nunca vi um presidente bater continência para a bandeira americana. Eu nunca vi um presidente ficar dizendo ‘eu amo os EUA, eu amo’. Ama a sua mãe, ama o seu país! Que ama os Estados Unidos! Alguém acha que os Estados Unidos vão favorecer o Brasil?”, questionou.
“Americano pensa em americano em primeiro lugar, pensa em americano em segundo lugar, pensa em americano em terceiro lugar, pensa em americano em quinto e se sobrar tempo pensa em americano. E ficam os lacaios brasileiros achando que os americanos vão fazer alguma coisa por nós. Quem tem que fazer por nós somos nós. A solução dos problemas do Brasil está dentro do Brasil”, afirmou Lula.
A parte mais fraca foi sobre a Venezuela. É verdade que ele atacou energicamente o governo Boçalnazi por reconhecer o Guaidó e a “vergonha” das manobras na fronteira. Ele condenou o apoio do governo brasileiro ao autoproclamado Guaidó, à tentativa de golpe e à intervenção dos EUA. Tudo isto é muito importante! O que não modifica o fato de que Lula não é um revolucionário. Ele não quer assustar a burguesia interna brasileira, pois sonha (ilusória e equivocadamente) em reconquistá-la para uma aliança “neo-desenvolvimentista”.
No entanto, fez questão de criticar o Chávez chamando-o duas vezes de “voluntarista, sem explicar quais características ou quais as políticas chavistas mereceriam tal “pecha” (e “por que?”). Disse: “não concordo com a política econômica da Venezuela; acho que é um equívoco”. Ele também não explicou “por que?” a “política econômica” (“no total?”, “em alguns aspectos?”, “quais?”) seria “equivocada”. Lula limitou-se a aludir (pela tangente) ao problema da falta de diversificação da economia; problema que é uma herança de mais de um século provocado pela classe dominante venezuelana e seus governos, que nunca buscaram diversificar a produção, limitando-se à administrar o parasitismo petroleiro.
Trata-se de um problema estrutural do capitalismo de formação dependente na Venezuela que o Chávez buscou combater, desde o início do seu governo. Sempre buscou a difícil diversificação do comércio exterior e da produção (que não se alcança num “estalar de dedos”). Buscou enfrentar estes problemas de uma modo planejado (e não improvisado): estabelecendo um efetivo controle nacional/estatal para recuperar a renda petroleira colocando-a a serviço da elevação do nível de vida e dos direitos populares; mas, também integrando a PDVSA ao mercado interno e regional (não como antes em que todos os insumos vinham dos EUA e países imperialistas). Integrando-a com o pouco que havia de indústrias básicas do país (siderúrgica, alumínio), como motor impulsionador de pequenas e médias indústrias e cooperativas. Colocando o petróleo a serviço da integração latino-americana (através de convênios com outras nações, troca por serviços de saúde e outros com Cuba, etc.); da cooperação internacional para impulsionar a pesquisa em busca de novas fontes de riquezas naturais (descobrindo reservas de ouro, coltan, nióbio, gás natural, petróleo na bacia do Orinoco); articulando-se com a China e Rússia para construir obras de infraestrutura, antes impossíveis. Tudo voltado para criar em médio prazo uma rede complexa e extensa, industrial, de desenvolvimento econômico. Enfim, Lula se preocupou em demarcar-se em relação ao chavismo, sem mencionar os avanços sociais garantidos, nem a generosa política internacionalista do chavismo, nem o bloqueio econômico e o roubo das divisas da Venezuela.
Por acaso o governo Lula apoiou uma ampla política de diversificação da produção industrial brasileira? Pelo contrário, os governos petistas não reverteram a tendência de décadas rumo a uma “re-primarização” da nossa economia, num país que atingiu, na segunda metade do séc. XX até a crise da dívida, um nível de desenvolvimento industrial incomparavelmente maior do que o venezuelano. Lula contrastou a compra dos aviões russos, que hoje se revelam decisivos para a defesa do país, com o problema de abastecimento de frutas. Como se o chavismo não tivesse sempre se empenhado em retomar a produção interna (antes inexistente), em criar instrumentos políticos para enfrentar o boicote de abastecimento e as pressões especulativas da burguesia comercial. Não há dúvida que erros foram cometidos pelos governos Chávez e Maduro; a crítica construtiva é sempre bem-vinda, interagindo amistosamente com a autocrítica. No entanto, críticas aos amigos se faz no ambiente adequado. Numa entrevista em que vários assuntos amplos deveriam ser abordados; penso que a ênfase do Lula na demarcação – ligeira, superficial e unilateral – com o chavismo, só pode ser explicada por seu posicionamento reformista-conservador e não revolucionário.
Lula discorda da política de ruptura com o imperialismo da Revolução Bolivariana. Incoerentemente ele se fixa num exemplo baseada nos efeitos do bloqueio (abastecimento de frutas), e deixa de enxergar que foi o Chavismo que buscou diversificar a produção interna, não só para poder diversificar o comércio exterior, mas para abastecer o consumo interno. Depois de mais de um século de rentismo petroleiro, a Revolução Bolivariana buscou por todos os meios ao seu alcance retomar alguma produção agrícola, por meio da reforma agrária e outros estímulos em prol de um difícil repovoamento do campo, em um país onde ele foi esvaziado ao extremo. Além disto, Lula defende os Kirschner e elogia uma série de outros dirigentes menos avançados, só buscando se diferenciar de Chávez; sem nenhuma menção à revolução democrática que, impulsionou a participação e o protagonismo popular de um modo inédito, que foi o mais elevado em toda a história da América do Sul.
Ainda assim, no conjunto, a entrevista de Lula foi positiva, inclusive pelo contraste estabelecido. De um lado, um líder popular de origem operária capaz de discorrer de modo inteligente durante quase duas horas sobre os mais variados assuntos políticos. De outro, a lamentável figura do capitão que hoje ocupa a presidência, incapaz de ler um “powerpoint”.
Se ideologicamente o petismo sempre se apresentou como uma alternativa para o capital, das mudanças por dentro da institucionalidade do capital, na condição de preso, esta dependência da institucionalidade se afirma contraditoriamente. Contraditório porque apela ao STF golpista por um lado, mas por outro, é obrigado a denunciar o Departamento de Estado dos EUA, a Lava Jato e Moro. Fica evidente que as possibilidades de Lula ser solto estão diretamente vinculadas ao protesto popular e ao necessário combate dos de baixo do Estado autocrático burguês. Portanto, cabe às organizações e ao povo lutador, colocar no horizonte político e ideológico a formação do bloco histórico antimperialista, anti-monopolista e antilatifundiário. A libertação de Lula será consequência da constituição desse bloco histórico capaz de enfrentar o imperialismo e as classes dominantes que estão estabelecendo uma ditadura no Brasil. Dessa forma, a luta pela libertação de Lula está intimamente associada a impedir que o governo consiga atingir seus objetivos regressivos, entre eles, o mais cobiçado pelos banqueiros: a Reforma da Previdência.
O Lula é muito inteligente e hábil, conquistou por seus próprios méritos grande prestígio não só entre o povo brasileiro, mas também em nível internacional. Obviamente, em sua entrevista, ele fortalece o movimento Lula Livre. O faz com dignidade e naturalidade: sem ser cabotino. Mais importante: a entrevista é um estímulo à mobilização contra as políticas do movimento golpista, implementadas na sua mais perversa versão pelo governo Boçalnazi.