Nota sobre a situação da Vila Soma: a luta de classes na cidade
Por Coletivo Usina
Ocupando uma grande gleba de uma indústria falida próxima ao centro da cidade de Sumaré/SP, a Vila Soma, conhecida hoje como a maior ocupação do Estado de São Paulo, se prepara para sofrer uma violenta reintegração de posse no início de 2016, dia 17 de janeiro.
Eleita pela prefeitura municipal e pela mídia local como o principal problema da cidade de Sumaré, defendemos que a Soma é, antes de mais nada, uma solução.
A Solução
Na Vila Soma foi solucionado o problema da terra, ao abrigar milhares de famílias em um terreno que estava há mais de 20 anos vazio, inútil socialmente, que acumulava dívidas de IPTU, e que enfim teve sua função social cumprida.
Ali foi solucionado o problema da construção, pois cerca de 2.500 casas já estão construídas, grande parte em alvenaria, o que significa, na falta de alternativas, investimento direto das famílias que, embora incalculável, está claro que é bastante alto na sua totalidade. Elas colocaram ali recursos próprios não apenas em material de construção, mas nas horas de trabalho suas e de outros trabalhadores, durante três anos.
Também foi enfrentado o problema da desagregação social: diante das investidas do poder público contra a ocupação, formou-se uma coordenação composta por representantes das famílias, e assembleias com centenas de pessoas são feitas sistematicamente. Uma ampla rede de apoio hoje está montada com profissionais, militantes e organizações em todo o Brasil.
As famílias também enfrentam o desafio do Direto à Cidade: o bairro se formou a poucos quilômetros do centro da cidade, lugar de maior densidade de infraestrutura e serviços.
O desenho viário e a delimitação dos lotes na Vila Soma facilitam a regularização e urbanização da área. A regularização fundiária e posterior urbanização da área permitiria que ali o problema da habitação fosse enfrentado em sua plenitude, certamente com custos inferiores à compra de outras áreas e posterior construção das unidades habitacionais.
Diante de fatos que indicam soluções, o que ocorreu para a Soma se tornar um problema de polícia, com reintegração de posse provavelmente violenta? Como, afinal, prefeitura e poder judiciário conseguiram construir um discurso que transformou as soluções em problemas?
O problema
O PLHIS (Plano Local de Habitação de Interesse Social) de Sumaré já advertia: “Sumaré não possui demarcação de ZEIS de vazios, o que impede que se reserve área para habitação de interesse social, e sem o instrumento não há como conter a valorização excessiva destes terrenos”. O PLHIS também chamava atenção para as áreas onde sequer há a cobrança de IPTU. Sem ter regulamentados os instrumentos básicos de política urbana, a prefeitura perde a governabilidade sobre parte de seu território urbano, sujeito ao INCRA. Ao invés de induzir a utilização dos terrenos por meio da tributação progressiva, a municipalidade realiza o contrário, estimulando a ociosidade especulativa das terras. Para agravar o quadro, a prefeitura também renuncia à arrecadação tributária mínima sobre o solo urbanizado, fato dramático para um município com tão poucos recursos – sendo a carência de recursos um dos motivos alegados para a não regularização da Soma.
Assim, compreende-se a enorme pressão habitacional no município de Sumaré – cidade que integra a Região Metropolitana de Campinas, importante centro do interior paulista. Quando a própria prefeitura, ao invés de buscar soluções, agrava o problema urbano, ela induz que as famílias tomem atitudes por conta própria. Assim fizeram as famílias da Vila Soma. Assim fizeram as famílias da ocupação Zumbi dos Palmares, também em Sumaré.
Em Sumaré, planeja-se a desigualdade
Em contraste com tamanho descontrole do seu território urbano, quando o objetivo agora é evitar a permanência de famílias de baixa renda em região de expansão do capital imobiliário, a prefeitura tem assumido discurso de rígida e inflexível defesa do planejamento urbano. Ocorre que, mesmo dentro do campo disciplinar do planejamento urbano, a prefeitura trabalha com a inversão dos princípios da democratização da cidade, argumentando que há na região da Vila Soma (região adjacente ao centro) todos os tipos possíveis de precariedade (carência de equipamentos públicos, redes de saneamento, rede viária e equipamentos públicos). Em contraposição, a prefeitura sugere o reassentamento em bairros periféricos, como Picernio e Maria Antônia. Planeja-se a desigualdade, incentiva-se a especulação imobiliária. Esse é o real problema.
Agora, a Vila Soma novamente constrói uma solução: diante da renúncia da prefeitura em buscar a regularização fundiária (certamente a solução mais adequada) as famílias novamente se mobilizaram e construíram uma nova solução. Em complexa articulação com Ministério das Cidades, Caixa Econômica Federal, GAORP (Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse), Governo do Estado, técnicos de diversas especialidades, construtoras e outras entidades, as famílias da Vila Soma pesquisaram terrenos, fizeram projetos, e foram selecionadas no final de 2015 para construção via Minha Casa Minha Vida.
E a prefeitura novamente agrava o problema: a prefeitura agora nega a emissão de documentação obrigatória (diretrizes municipais e das concessionárias, que estão proibidas por ela de emitirem seus pareceres) para a execução do empreendimento pelas famílias, afrontando diretamente a lei de uso e ocupação do solo da cidade, que determina prazos para sua emissão. Tais diretrizes nada mais são que procedimentos técnicos e burocráticos, e é obrigação da municipalidade fornecer tais documentos. Afronta igualmente negociações feitas por ela mesma no GAORP, onde indicou a viabilidade dos empreendimentos nos bairros nos quais agora a população investe, sem ter decidido por isso, na perspectiva de construção de soluções de consenso.
O drama da atual situação
A intransigência do poder judiciário e da prefeitura tem gerado um clima de guerra no município neste período que antecede a reintegração de posse, com assédio direto da Polícia Militar através de uso ostensivo de suas máquinas bélicas: carros, motos, helicópteros, drones e, claro, muita pressão (e repressão) psicológica com entrega de panfletos intimidatórios às famílias. Uma cidade inteira, de 10 mil moradores, promete resistir. Todos receiam por um conflito violento, com riscos de morte. Até o Comando da Polícia Militar chegou a conseguir, ainda em novembro, um habeas corpus para evitar sua própria prisão no caso de descumprimento da ordem judicial, pois alegava que não estavam sendo respeitadas as suas condições para “apoiar” a reintegração (tempo de planejamento, infraestrutura, etc).
A Vila Soma ainda conseguiu, demonstrando sua disposição e legitimidade, uma ordem judicial da 10ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, em dezembro, que manda suspender a reintegração – ordem que está sendo diretamente desrespeitada pela PM, pela prefeitura e pelo Ministério Público, que encabeça a ação que está sendo preparada. Os responsáveis pelo desencadeamento do conflito devem ser aqueles que renunciaram à sua obrigação enquanto poder público, de regular a cidade, induzir a ocupação de seus imóveis ociosos, combater a especulação imobiliária, e apoiar as iniciativas populares de construção de soluções. Agora, ao negarem diretrizes básicas, não são apenas cúmplices, mas também agentes ativos na configuração de um conflito violento.
Que os reais responsáveis pelos problemas sejam apontados, e que a intolerância seja superada em prol de soluções reais. A sociedade não aceitará um novo Pinheirinho. Mais do que nunca, contra a intolerância dos ricos, a intransigência dos pobres.
Fonte: http://www.usina-ctah.org.br/blog/nota-sobre-a-situacao-da-vila-soma-a-luta-de-classes-na-cidade1