QUE TEMPOS SÃO ESTES?

QUE TEMPOS SÃO ESTES?

Por Amauri Soares*

São tempos de crise do capitalismo! Aliás, tempos em que a crise do capitalismo, que é cíclica e permanente, se manifesta nas formas mais regressivas, trazendo os efeitos nefastos de uma “civilização” cuja razão de ser é garantir a geração de lucro. Se gerar lucro é a razão de ser do modo de produção capitalista, e isso em si já é um problema sem solução nos marcos do sistema, o problema se agrava quando a geração de lucro tem como objetivo a acumulação privada para um punhado cada vez menor de monopólios. Aliás, o capitalismo foi erguido sobre o estatuto da propriedade privada dos meios de produção, sendo redundante falar em lucro privado. Mesmo as empresas públicas que produzem mercadorias e, portanto, geram valor novo, acabam produzindo na lógica de uma empresa privada, com os mesmos pressupostos, com a mesma racionalidade, com o mesmo padrão tecnológico e com os mesmos direitos laborais. Partilhar um percentual dos lucros para projetos sociais, o que na maioria das vezes é retórica, não altera a forma e o método da acumulação. A rigor, não muda nem o objetivo, porque todas as empresas públicas têm objetivos delimitados dentro dos interesses gerais da sociedade, quase sempre segundo os pressupostos da classe economicamente dominante. Isso só pode ser alterado quando o Estado, ou pelo menos o governo, age no sentido oposto ao interesse dos monopólios privados, o que implica na necessária existência de um projeto alternativo de sociedade.

A crise é cíclica porque ela se repete com formatos mais ou menos uniformes de tempos em tempos, e permanente porque ela não pode deixar de existir (enquanto prevalecer a forma mercadoria), e é alimentada pelo próprio período anterior de expansão. Ou seja, a própria expansão do período de crescimento gera a crise subsequente, sem direito à apelação, sem remédio que se possa dar de forma efetivamente resolutiva. Ficar os governos inventando receitas aqui e acolá, no máximo, retarda um pouco (muito pouco), transfere, ou modifica as características, mas jamais supera e evita de fato os efeitos nefastos das crises.  Isso é capitalismo, e admira que governantes supostamente esclarecidos fiquem inventando argumentos para justificar o injustificável. Dentro do capitalismo, não tem como um governo parar com as próprias mãos (com medidas administrativas, legislativas, repressivas) os efeitos das crises e o fato de que elas virão. Ou se faz um enfrentamento consequente, agindo na contramão da crise e preparando condições objetivas e políticas para não perecer aos seus efeitos, ou a crise atropela qualquer governo, qualquer planejamento feito dentro da própria lógica capitalista. Em última instância, só é possível enfrentar as crises econômicas do capitalismo fora do capitalismo, ou, pelo menos, num projeto de soberania popular alheio aos seus valores, e capaz de construir as condições materiais e políticas que não sejam abaladas pela lei do valor das mercadorias.

É importante dizer isso porque há poucos anos, quando o Brasil crescia em torno dos 5% ao ano, era comum ouvir-se um turbilhão de arrogância de governistas e governantes quando se falava da crise do capitalismo, dos efeitos que por certo chegariam aqui com mais força, mais cedo ou mais tarde. Um certo Luiz Inácio chegou a dizer que transformara (ele e seu governo) o “tsunami” econômico que ocorria nos países centrais do capitalismo em uma “marolinha” quase imperceptível para o Brasil, e uma claque de seus ministros, assessores, apoiadores honestos e bajuladores mau intencionados, saíram por aí a abafar, renegar, tentar ridicularizar qualquer reflexão mais realista sobre os efeitos da crise que chegariam ao Brasil, como de fato chegaram. Faltou a eles saber que o capitalismo não se dobra a discursos messiânicos!

Seguindo a mesma lógica ufanista, tão falsamente “patrioteira” quanto o auto elogio dos militares por conta do “milagre econômico” da década de 1970, o governo e suas instituições, especialmente as de fomento (BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica), mas também as empresas públicas, saíram a semear o futuro, planejando e fazendo estimativas estratosféricas. Na cabeça e no discurso delirante de muitos, o Brasil chegaria à potência mundial, e era já um país “imperialista”, embora, para alguns dos governistas, de um “imperialismo do bem”. Só esta ideia conseguiu produzir o raciocínio e o encaminhamento de que o Brasil compraria uma refinaria de petróleo dos Estados Unidos da América, e passaria a participar do controle dessa questão estratégica que é a energia, no centro do próprio império. À parte a ganância corrupta de uns e outros, havia o delírio de que poderíamos tomar o império em nossas mãos, e só isso explica (se é que tem uma explicação possível) a compra da refinaria de Pasadena por parte da Petrobrás. Alguém que tivesse noção de soberania nacional jamais imaginaria que os ianques nos venderiam uma refinaria de petróleo caso ela estivesse dentro de um padrão médio de produtividade e em preço compatível.

Pasadena é só um exemplo, embora lapidar, do ufanismo que tomou conta das mentes, até mesmo de algumas que se poderia avaliar como bem informadas. Em todos os setores, tudo passou a ser planejado de forma desproporcional às condições e até mesmo à necessidade, dentro da febre de que ninguém mais seguraria “a juventude do Brasil”. O passo em falso consistiu em fazer perspectiva de crescimento e de desenvolvimento fora da realidade existente no mundo, sem levar em conta a inexorabilidade dos efeitos da crise econômica mundial. Bastaria terem lido (agora com mais atenção) algumas páginas do Manifesto Comunista de 1847 para saberem que o capitalismo não reconhece fronteiras, e não poupa as ilhas. Se não concordam (ou pararam de concordar com Karl Marx porque viraram governo) deveriam ter ficado pelo menos com o “benefício da dúvida”. Mas não, renegaram todos os ensinamentos do passado e mesmo todos os discursos de quando eram oposição, e se atiraram no delírio do paraíso na terra, paraíso que jamais foi para a maioria da população, não poderia ser e não será jamais sob o domínio do modo de produção capitalista. O idílio dos bons tempos não era para todos, e sim para os de sempre, os donos dos grandes meios de produção. A velha e tradicional classe média empobreceu, os miseráveis passaram a comer, os remediados passaram a andar de carro e até de avião. Por isso o entusiasmo. Se teve alegria para a massa trabalhadora, os lucros ficaram para alguns, e a nuvem de fumaça ficou para todos, e serviu para cegar a maioria dos antigos lutadores sociais.

Agora eles têm nos ensinado outro conceito: “desinvestimento”. O fato de que a perspectiva de crescimento foi frustrada pelos efeitos da crise leva a que tenham que parar de investir, reduzir as quantidades e mesmo abandonar programas e ações. A isso dão o nome de “desinvestimento”, o que deveria ser apenas “investimento menor” do que o planejado de forma megalomaníaca nos últimos anos. E a oposição de direita, bem posicionada nos meios de comunicação de massa, não cansa de dizer que o problema da crise econômica e do empobrecimento da Petrobrás está relacionado com a corrupção. Em medida secundária, têm razão, porque uma obra maior tem uma “coparticipação” igualmente maior para os “facilitadores”. Mas a realidade é que o suposto empobrecimento de Petrobrás está relacionado, principalmente, com a crise mundial do capitalismo e com os efeitos disso no preço do petróleo, além de possível manipulação por parte do imperialismo. Claro que certos negócios, iniciados ou realizados sem base na realidade existente ou presumível, em choque com os efeitos da crise, levam a uma situação de aparente desastre. Não haveria desastre e nem a necessidade de qualquer pânico se a lógica não fosse de acumulação e se a sociedade, e, por consequência, o Estado, estivessem organizados com o objetivo de resolver os problemas das pessoas e não as ganas insaciáveis do capital. Basta deixar o petróleo onde está, esperando o momento em que ele seja necessário, e usá-lo na quantidade necessária, ao custo real de produção. A anarquia insana do capital impede essa racionalidade. Numa matilha de lobos, a presa será devorada pelo mais forte, ou por aquele lobo que chegar primeiro.

A crise é de superprodução de mercadorias, de forma que não tem saída enquanto os estoques estiverem lotados e enquanto o capital não encontrar um novo padrão de exploração da classe trabalhadora, o que requer tempo: tempo para o consumo (mediante compra) das mercadorias já produzidas e tempo para o nível de desemprego e de empobrecimento forçar as pessoas a aceitarem empregos com menor salário e com menos direitos. Diferente disso, só o rompimento com o sistema de mercado e a construção de uma alternativa oposta às lógicas internas do capitalismo.  Ou seja, a saída seria oposta àquela que está sendo implementada pelo governo e proposta pela oposição de direita. Mas o governo brasileiro não ousa sequer pensar em romper com a lógica interna do capitalismo, nem mesmo em fazer algum enfrentamento mais robusto, como tem sido feito por outros governos na América Latina, até mesmo pela Argentina, que tem colocado regras à exploração dos monopólios.

Ao contrário, o governo brasileiro tem trabalhado para preparar as condições para o novo impulso (futuro) do capital monopolista, através do corte de direitos da classe trabalhadora e da diminuição das garantias sociais. Já a oposição de direita propõe ainda maior abertura para a exploração do capital monopolista externo (especialmente dos EUA) sobre os recursos naturais brasileiros, associando esta desregulamentação (ou regulação mais flexível) à diminuição do “custo Brasil”, que devemos entender, sempre: menos impostos para os monopólios, regressão dos direitos trabalhistas e garantias sociais. Ou seja, governo e oposição de direita estão a cada semana mais próximos em termos de posicionamentos. Ambos se posicionam em favor das políticas que interessam aos monopólios privados, tendo divergências apenas de nuances secundárias.

A recente visita de Dilma Rousseff aos Estados Unidos (aliás, foram duas visitas em três meses) mostra exatamente isso: ela está buscando implementar uma política mais próxima ao que tem sido defendido pelo PSDB. Bastou a direita ir para as ruas para o governo Dilma, do Partido dos Trabalhadores, correr para reatar relação com os Estados Unidos da América (relações que estavam estremecidas desde o episódio da espionagem feita pela NSA sobre as correspondências, inclusive pessoais, da presidenta), aprofundando o grau de subordinação. Nos Estados Unidos, nos últimos dias do mês de junho e primeiros dias de julho (2015), Dilma conversou com empresários e os convidou a virem participar dos leilões de rodovias, ferrovias, aeroportos; conversou com o presidente dos EUA e falaram em “Acordo de Livre Comércio” (que é uma forma dos Estados Unidos realizarem a ALCA de forma bilateral com cada país); esteve em universidades e com o dono da google, a quem convidou para investir mais no Brasil, especialmente para levar a internet para a Amazônia. Como prevíamos há três meses, o governo Dilma, para aliviar a pressão pelo seu impeachment buscaria maior proximidade com os Estados Unidos, deixando esfriar um pouco as outras relações. Os Estados Unidos sempre era o principal “parceiro” econômico do Brasil, posto que foi ocupado pela China nos últimos anos. Não estranhemos se os gringos reassumirem a primeira posição em pouco tempo.

Naturalmente existem diferenças entre os governos do PT e seus aliados e o governo que seria realizado pelo PSDB e seus aliados! Numa conjuntura tão delicada quanto a latino-americana de hoje, ter no Brasil um governo completamente alinhado com a política imperialista e abertamente inimigo dos governos “não alinhados” da América Latina (Venezuela, Bolívia, Equador, Nicaragua, El Salvador, Uruguai, Argentina) seria começar um retrocesso no continente. Da mesma forma, mesmo que timidamente, alguns programas do governo federal petista merecem consideração, apesar de parciais. O programa “mais médico” é um exemplo, pois, mesmo não deixando de ser parcial, aponta para um dos grandes problemas nacionais e toma algumas medidas que têm o rumo certo. Por outro lado, e agora com o crescimento da direita (mesmo fora do governo), dá para ver onde poderia chegar um governo Aécio Neves. Olhando para o Congresso Nacional de hoje podemos avaliar o caminho de regressão a que seríamos submetidos em termos de perdas de direitos civis, de aumento da criminalização sobre os movimentos sociais e os lutadores em geral. Terceirização “ampla, geral e irrestrita”; redução da maioridade penal; constitucionalização do financiamento empresarial de campanha… são exemplos de políticas que por certo estariam dentro da pauta de um governo do PSDB, seriam políticas impulsionadas a partir do poder executivo, para além daquelas que já estão sendo implementadas desde o palácio do Planalto com todo o apoio da oposição de direita. Outro exemplo? Debate-se agora no Congresso Nacional projeto do senador José Serra (um dos ícones do PSDB) que propõe o fim do regime de partilha do pré sal, ou seja, que faça-se concessão pura e simples, para os monopólios privados explorarem conforme suas conveniências, e sem nenhuma participação da Petrobrás. Aliás, começa a aparecer melhor as razões pelas quais se investiga com mais persistência a corrupção na Petrobrás comparativamente com outras empresas e com outros setores. Querem convencer a população de que é preciso privatizar, quebrar todo e qualquer controle que a Petrobrás possa ter sobre a exploração do petróleo, interesse que cresceu muito depois das descobertas do petróleo abaixo da camada de sal, sob o oceano. Que outra empresa do mundo descobriu isso em algum outro lugar? Ainda mais uma: quais foram os senadores que estiveram recentemente na Venezuela criando um factoide político para tentar construir a tese de que o país vizinho é uma ditadura? Sim, Aécio Neves, seu candidato a vice-presidente, Aloysio Nunes Ferreira, e mais uns tantos da mesma agressividade. Estes elementos, em si, bastam para justificar ter atuado no sentido de derrotar o candidato do PSDB no segundo turno das eleições presidenciais do ano passado.

Por outro lado, e voltando ao debate anterior, é preciso deixar absolutamente claro que não existe a menor chance de apoio das forças populares ao governo encabeçado pelo PT. Uma coisa é se posicionar contra qualquer forma de golpe contra o governo atual, pois este seria o início de um processo cujo desdobramento ficaria completamente à mercê das forças reacionárias deste país. Outra coisa bem diferente é defender ou ter ilusão com este governo, pois, como já dissemos tantas vezes desde 2003, o governo encabeçado pelo PT é um governo de conciliação de classes incapaz de realizar um reformismo mesmo que tímido, sem projeto de emancipação nacional e menos ainda de soberania popular. O PT assumiu o governo no começo de 2003, jurando respeitar todas as institucionalidades do Estado autocrático, assim como perseverar nos compromissos macro econômicos com o sistema imperialista. A soberania popular foi desprezada olimpicamente, no período em que ela deveria ter sido fomentada para apontar o rumo ao governo e para dar suporte de massa quando as investidas da direita viessem. O PT vez o contrário do que deveria ter feito! A festa da posse (primeira posse de Lula, em 1º de janeiro de 2003) ainda estava na retina, com as pessoas em êxtase mergulhando no espelho d’agua do Congresso Nacional para comemorar a ascensão de um operário à presidência da república, e o governo já retocava seu primeiro ataque aos trabalhadores, mais uma contra-reforma da previdência, aumentando o tempo de serviço necessário para a aposentadoria, diminuindo o valor das contribuições aos aposentados, abrindo espaço para o crescimento do mercado da previdência privada. Ali mesmo naquele primeiro semestre de 2003 o PT e seus aliados começaram a trilhar o caminho da própria morte: perder o apoio dos trabalhadores medianamente informados e construir o delírio dos monopólios.

Os avanços da década passada foram resultado do espaço que ainda havia para o crescimento do mercado interno, intrinsecamente ligado ao espaço de crescimento da exploração privada sobre os recursos naturais e diante das necessidades infra estruturais, espaços menosprezados pelos governos anteriores. O Brasil cresceu porque tinha cancha para crescer dentro de uma taxa de lucro considerada razoável comparada com a média mundial, e isto foi propiciado também porque os sucessivos governos (incluindo os do PT) concordaram em diminuir o tamanho do chamado “custo Brasil”, o que significa dizer que tais governos, incluindo os do PT, atuaram no sentido de baratear o custo da produção, diminuindo o preço da força de trabalho e empobrecendo as garantias sociais a partir da isenção de impostos para os monopólios. Enquanto nos EUA e na Europa o capital já estava asfixiado pela crise de superprodução de mercadorias, tornando “impraticáveis” mais investimentos nos padrões anteriores, o Brasil foi um espaço de exploração que se mostrou viável, por suas condições naturais, por seus recursos, por sua força de trabalho (barata), por governos que aceitavam e conseguiam mais e mais diminuir direitos dos trabalhadores (aumentando a mais valia) e diminuir impostos (preservando mais lucro para os monopólios). Prova disso tem sido o tratamento dado à questão previdenciária pelos governos do PSDB e do PT há vinte anos, assim como as medidas de ajuste fiscal dos tempos mais recentes.

Elemento novo e preocupante é o crescimento da direita em todo o mundo, ganhando a simpatia até mesmo de setores populares que não vinham se manifestando politicamente. Temos uma onda conservadora que é universal, a começar pela Ucrânia, passando pela Europa e vindo parar na América Latina. As gerações que não viveram a guerra fria desconhecem este fenômeno. Os que viveram e militaram antes da década de 1980-90 voltaram a sentir a mesma sensação de estar sendo patrulhados pelo próprio vizinho, ou de dentro da própria família. O discurso do “fim da luta de classes”, tão em voga na década de 1990 do século passado, fez diluir o ataque odioso aos comunistas e à esquerda em geral, já que a “vitória” do “mundo livre” capitalista lhes parecia evidente. Bastou o surgimento de alguns governos anti-imperialistas e de orientação socialista (para além de Cuba) que o “mundo livre” e desenvolvido reagrupou sua tropa de choque, e voltou a produzir propaganda anticomunista em ritmo industrial. A velha propaganda nazista da década de 1930, com suas aberrações contra a União Soviética, já reaquecida nos anos de 1970-80 sob Reagan e Busch pai, volta agora realimentada pela caça ao “terrorismo”, e como todo mundo que vê televisão sabe, o coração do satã está em Caracas. O “Estado Islâmico” está no Oriente Médio, e foi construído e armado pelo imperialismo em seu combate insano ao Iraque, à Líbia e à Síria, mas o inimigo a ser caçado mora em Caracas, logo ali ao norte da Amazônia.

Aqui no Brasil, o crescimento da direita começou a aparecer em 2013, aproveitando-se de forma oportunista de pautas legítimas e necessárias, como transporte, educação, saúde, infiltrando-se nas manifestações populares e desviando-as dos seus objetivos originários. A disputa eleitoral de 2014 foi espaço para a radicalização das diferenças (mesmo que inexpressivas do ponto de vista econômico), reaparecendo uma direita homofóbica, contra nordestino, contra assistência aos pobres e contra pobres nas universidades. A vitória por pequena margem da candidatura do PT para o quarto mandato consecutivo provocou a ira destes setores. O moralismo seletivo passou a ser a tônica de uma parcela imensa da população, e até mesmo instituições importantíssimas como o poder judiciário, o ministério público e a polícia federal passaram a dirigir o foco de sua atuação para investigações que possam levar à satanização de partidos, personalidades e instituições que são considerados (mal considerados) pelo imaginário popular como “de esquerda”. As manifestações organizadas pela direita nos meses de março e abril deste ano de 2015, com o pretexto de combater a corrupção, foram atos de caráter golpista, organizados para tentar retirar Dilma Rousseff (e o PT) do governo. A luta contra a corrupção não era isenta de posicionamento político partidário, pois as frases e as palavras de ordem diziam explicitamente “Fora Corruptos do PT”, não fazendo o menor caso para os outros corruptos, mesmo que as manifestações de rua passassem bem próximas da casa de muitos deles. Parte considerável dos manifestantes pedia mesmo a intervenção militar para derrubar o governo pela força. Nestas manifestações, não se viu uma única vez alguma frase, palavra de ordem ou discurso que fosse contrário às retiradas de direitos que estavam sendo debatidas no Congresso naqueles mesmos dias, e fala-se até que populares bem intencionados com faixas contrárias à terceirização foram coagidos a sair das manifestações, o que mostra seu caráter indubitavelmente de direita.

Como avaliávamos naqueles dias, tais manifestações levariam o governo federal a fazer ainda mais concessões à direita, o que já está fartamente provado: medidas provisórias do ajuste fiscal; veto à relativização do fator previdenciário; privatizações de mais aeroportos, rodovias e ferrovias; corte de recursos previstos no orçamento para os serviços essenciais; maior impulso à relação comercial com os Estados Unidos, e a provável investida contra as reservas de petróleo do pré-sal. Já o Congresso Nacional, que tem na presidência da Câmara dos Deputados o ultraconservador Eduardo Cunha (PMDB) caminha ainda com mais ferocidade contra direitos históricos da classe trabalhadora e contra garantias civis fundamentais.

Apesar de todo o esforço do governo Dilma para contentar os monopólios, adotando integralmente a política de “apertar o cinto” (da classe trabalhadora, por óbvio), as pressões pelo seu impeachment não desaparecem completamente. Do ponto de vista político, a direita quer mais, quer desfazer qualquer presença vinda das lutas populares dentro do governo. Pintam o governo de vermelho para melhor cassar (e caçar) os vermelhos de fato. Existe sangue nos olhos da velha oligarquia latino-americana, e querem aniquilar qualquer avanço popular no sub continente. Já não basta um governo brasileiro moderado, conciliador; querem o Brasil alinhado com a política de agressão, inclusive militar (se for preciso) aos países vizinhos. O PSDB tem encarnado esta posição, e só isso justifica a incursão de Aécio Neves e sua tropilha de senadores e deputados a Caracas. O que esperar do governo de um partido cujas lideranças se prestam ao tipo barato de provocação que Aécio foi fazer ao governo bolivariano da Venezuela? Esta gente não quer pouco, quer tudo! Inclusive o petróleo do pré-sal, sem qualquer restrição, sem qualquer controle e sem qualquer participação da Petrobrás, bastando ver o projeto de outro prócere tucano, José Serra, no Senado Federal. Existe uma direita no Brasil, com aliados poderosos fora do Brasil, que já não quer diálogo e boa vizinhança, e por isso não se deve descartar a possibilidade de golpe, mesmo que por via aparentemente institucional. Ou como explicar o reaquecimento repentino de notícias sobre a espionagem da NSA contra autoridades brasileiras justamente no momento em que Dilma chegava de viagem aos EUA onde fora depor armas ao imperialismo ianque? Pode existir algo ainda pior do que aquilo que conseguimos ver em termos de ataques da direita reacionária.

Ao mesmo tempo, temos os movimentos populares fragilizados e desorganizados como “nunca antes na história deste país”. A política de ataque aos direitos, o crescimento da direita, a caminhada do governo para posições insustentáveis para quem preserva alguma posição de esquerda, nada disso tem servido para unir os setores populares. Algumas mobilizações comuns ocorreram, mas sempre com muita dificuldade, com ritmos diferentes em cada estado, unindo agora para desunir no momento seguinte, sempre com base em pautas muito específicas, e escolhendo com muito cuidado as frases a serem escritas e pronunciadas para tentar parecer um movimento de fato unitário. Evidente que atos como os dos dias 15 de abril e 29 de maio, contra a terceirização e o ajuste fiscal, foram importantes, não obstante todas as dificuldades expostas acima. Por mais pontuais que tenham sido, mostram que mesmo para setores governistas tem sido insustentável permanecer calado diante dos ataques aos direitos da classe trabalhadora e do povo pobre.

Nossa postura deve continuar sendo a busca pela unidade naquilo que for possível para preservar direitos e garantir espaços mais amplos para a defesa contra as forças reacionárias e suas políticas de construção da barbárie. E, se for contra o fascismo, devemos nos aliar com todas as forças democráticas existentes na sociedade, pois a história já mostrou que o capital em crise produz na política a mais insana barbárie, recrutando na sociedade seus mais desqualificados quadros para guindá-los aos postos de governo. Setores governistas podem estar honestamente na luta em momentos cruciais como os que temos visto, e por isso é preciso uma postura que não interdite a atuação conjunta. Construir uma greve geral contra a retirada de direitos, por exemplo, requer a participação de milhares de entidades sindicais e populares. Portanto, não se alcançará qualquer êxito significativo nesta conjuntura se não conseguirmos aglutinar todas as forças populares, governistas e não governistas. Se alguém argumentar que as forças populares governistas não virão honestamente para a luta em defesa dos direitos históricos da nossa classe (e não temos certeza se virão ou não) pior para todos nós, pois a derrota já estará definida desde agora. Nosso esforço para que venham também precisa ser honesto.

Ao mesmo tempo, não resta dúvida de que a prioridade precisa ser a aglutinação das forças de esquerda, que se unam com base em um programa mínimo de combate à política do bloco de forças dominantes, composto pelos monopólios, pelo latifúndio e pelo imperialismo. É preciso desenvolver a capacidade de ampliar o movimento real sem perder a perspectiva estratégica, e disputar a hegemonia política no interior da sociedade, pois esta é a única forma de conseguir impor ao bloco dominante um programa popular que abra caminho para o socialismo. Nada disso se pode conseguir sem mobilização popular, sem a consciência coletiva e organizada das classes trabalhadoras, do povo pobre e de outros setores de base da sociedade. O caminho para a emancipação popular requer mais que meia dúzia de pressupostos revolucionários, por mais bem intencionados que sejam. É preciso combater a política de isolamento de cada “grupo” político em sua razão exclusivista. O baluartismo auto proclamatório não constrói movimento. No máximo, alguns militantes a mais para o pequeno grupo, mesmo que o pequeno grupo tenha nome de partido. Mas não se trata de negar os partidos e outras organizações de esquerda, de diversas origens e de diversas orientações: comunistas, socialistas, humanistas… Trata-se de reconhecer a sua existência e respeitar as suas diferenças, priorizando o que é central para o movimento avançar, buscando exaustivamente os consensos e colocando o objetivo de classe acima do “patriotismo de partido”. Em momentos difíceis como os atuais, é preciso mais generosidade entre as organizações populares, partidárias ou não. A palavra de ordem pela “unidade” precisa deixar de ser apenas um subterfúgio retórico para atrair mais simpatizantes para o próprio partido, e passar a ser o exercício efetivo para construir consensos e buscar avanços reais para o movimento popular. Sem esta postura, a esquerda não voltará a crescer e as imensas massas populares continuarão a ser orientadas pela direita, inclusive na sua ideologia de combate à esquerda. A construção do movimento popular capaz de dar suporte à estratégia socialista depende de novas sínteses, e precisamos reconhecer que nenhuma organização partidária da esquerda pode se considerar auto suficiente nos tempos atuais. É preciso, portanto, superar o sectarismo, a auto construção a qualquer preço e permitir a possibilidade da construção de espaços comuns que sejam tão respeitados por todas as organizações quanto é o respeito que cada uma delas quer ter das demais.

Julho de 2015

* Amauri Soares é membro da Direção Nacional do Polo Comunista Luiz Carlos Prestes

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