Eleições 2022: tática política e tática eleitoral

Eleições 2022: tática política e tática eleitoral

Por: Giovanny Simon

Depois de um longo hiato sem publicar reflexões em minha coluna, volto ao Brasil e as páginas d’a Coluna para provocar algumas reflexões sobre problemas muito vivos para a esquerda em 2022. Sem pretensão de resolvê-los, é possível ao menos incitar uma discussão mais associada ao horizonte político mais largo nessas breves palavras.

Parto do princípio de que toda tática política deve ser um produto de uma análise da realidade concreta. O taticismo, modo de pensar e orientar a política que subordina a análise teórico-política às necessidades tática, ainda que a tática esteja eventualmente correta, pode levar a consequências negativas no longo prazo, como bem argumentou György Lukács em seu ensaio O processo de democratização. Vou buscar, portanto, rapidamente enumerar alguns dos pontos cruciais da análise pelo qual me oriento, mesmo que eles já tenham sido repetidos noutros textos:

  1. O mundo vive uma crise estrutural do sistema do capital que coloca em risco não apenas o modo de produção dominante, mas a própria sobrevivência da humanidade. Isto é, as contradições fundamentais do sistema do capital, entre elas a contradição entre desenvolvimento das forças produtivas e relações de produção, atingiram graus perigosíssimos na medida em que a queda das taxas de lucro empurra o capital a uma voracidade e agressividade sem precedentes. Nesse cenário, mesmo o reformismo mais tímido é inadmissível ao imperialismo, tornando impossível uma experiência duradoura de social-democracia clássica. O sistema do capital vive um continuum depressivo que torna as crises cíclicas mais longas e mais frequentes, quase ao ponto de serem indistinguíveis umas das outras, enquanto os períodos de recuperação são mais curtos e incapazes de reverter as consequências dos períodos depressivos. Mais do que uma crise catastrófica, estamos assistindo um doloroso definhamento da humanidade. A pandemia apenas acelerou e aprofundou uma crise já em gestação. É provável também que ainda não tenhamos sentido as suas consequências mais graves;
  2. O imperialismo, para conter a queda das taxas de lucro, emprega na América Latina predominantemente a tática de acumulação por espoliação, aplicando golpes de Estado e cooptando governos favoráveis a uma política de desindustrialização, re-primarização da economia e de controle do fluxo de matéria-prima como uma das formas de garantir os seus superlucros. Para isso, o estabelecimento de governos absolutamente servis é fundamental. Novamente: mesmo o reformismo mais tímido, mesmo o de tipo petista que combina políticas de compensação econômica aos mais pobres e valorização do salário mínimo com estímulo ao consumo doméstico, recorrendo a uma internalização do capital financeiro, é inadmissível para o imperialismo. Além disso, o programa do imperialismo torna-se assim incompatível mesmo com as formas de democracia restrita existentes no continente. A truculência política é inseparável da espoliação econômica e da tragédia social;
  3. Por essas razões, considero que o impeachment contra Dilma Rousseff em 2016 foi um golpe da mesma natureza que os golpes em Honduras, Paraguai e Bolívia, sem falar nas tentativas de golpe contra a Venezuela, a infiltração de Moreno no Equador e a eleição de Macri na Argentina. Todos eles tiveram em seu âmago o estabelecimento de governos pró-imperialistas, ultraconservadores e proto-fascistas. Eles fazem parte de uma mesma ofensiva de guerra híbrida contra processos heterogêneos e de níveis diversos de compromisso com as massas trabalhadoras e o socialismo em nosso continente. Esse golpe foi comandado desde Washington e teve a participação ativa do núcleo duro das Forças Armadas, da direita tradicional no Brasil e a cumplicidade de diversos setores da esquerda, inclusive dentro do PT. Rejeito, portanto, a tese de podermos contar com um setor “democrático” dentro das Forças Armadas, tampouco acredito em qualquer compromisso estratégico com frações da direita tradicional “anti-bolsonaristas”;
  4. Assim, a eleição de Bolsonaro não foi um acidente. Ele era o candidato número um do imperialismo e teve o caminho pavimentado pela direita tradicional que perseguiu, prendeu e cassou a candidatura de Lula em 2018. Esse movimento fez parte de uma mesma construção jurídico-política capitaneada especialmente pela Lava-Jato e pelo golpe de 2016 que criaram efetivamente um Estado de exceção no Brasil. Bolsonaro e a direita tradicional não têm qualquer divergência de programa, ambas as frações são hegemonizadas pelo imperialismo. Por essa razão, não são dignas de confiança quaisquer alianças políticas com a direita tradicional, seja Rede Globo, o “centrão”, ou a direita desmilinguida do tucanato. Se divergem, é apenas por quem ficará com a sua parte do butim;
  5. O governo Bolsonaro é um misto eclético de tradições ultraconservadoras, servilismo político e delinquência pessoal. Mas acima de tudo Bolsonaro representa o esforço e o projeto do imperialismo em estabelecer uma ditadura terrorista do capital financeiro. Por isso, o governo Bolsonaro empenha-se diuturnamente em se prolongar no governo, inclusive por vias inconstitucionais. O fato de ele não ter conseguido ainda, não significa que ele não queira obsessivamente estabelecer uma ditadura policial no Brasil. Seu governo é fascista no conteúdo (e cada dia mais na forma). Para atingir seu objetivo ele precisará golpear duramente a direita tradicional, mas com certeza seu objetivo primário será aniquilar a esquerda, especialmente o PT;
  6. Por último, é importante destacar que ainda que Bolsonaro seja a face visível do fascismo no Brasil, esse movimento não se resume a ele. A ideia de um “bolsonarismo sem Bolsonaro” é, na verdade, a continuidade do movimento golpista e fascista que busca consolidar a ditadura terrorista do capital financeiro no Brasil. Esse movimento, como vimos, tem muitos atores e seu centro articulador fica fora das fronteiras nacionais e carrega o interesse econômico da mais poderosa burguesia do planeta: o imperialismo estadunidense.

Com bases nessas breves considerações, ainda que sempre precisem ser aprofundadas e atualizadas, pretendo discutir o significado da tática política para esse momento histórico.

É comum, especialmente em um ano eleitoral, que a tática política seja quase identificada com a tática eleitoral. Mas defendo que elas são absolutamente diferentes, embora estejam imbricadas dadas as peculiares circunstâncias históricas colocadas.

Já assisti muitas rupturas na esquerda que ao menos publicamente se diziam motivadas por escolhas eleitorais. Daquelas autenticamente motivadas pela escolha em apoiar x ou y candidato, só posso considerar como tolices. Das outras, que usam como subterfúgio, são apenas desonestas ou covardes. Eleições são passageiras e pelo menos não deveriam ser razão de rupturas entre revolucionários que em tese não as veem como elemento central da disputa política. Seria mais natural e honroso romper quando divergências de fundo aparecem. Mas como a política é feita de pessoas reais, querelas eleitorais ou mesmo de outra ordem podem motivar debandadas.

A tática eleitoral, ao meu ver, deve estar subordinada e adequada a tática política do momento. Diante disso, devemos dar prioridade à discussão da tática política. Até que estejamos com uma opção tática unificada e mais clara, a discussão da tática eleitoral não passa de desejos subjetivos e preferências pessoais.

Considerando que:

  • O inimigo está evidentemente operando uma violenta ofensiva para aplicar o projeto econômico e político de fascistização no Brasil;
  • O inimigo está frequentemente dividido em temas secundários e predominantemente unificado no tema principal que é o projeto econômico;
  • O governo Bolsonaro é o representante mais saliente, mas não é o único agente motor do movimento de fascistização do Brasil;
  • O projeto econômico e político de fascistização está em aberta contradição com o interesse das grandes massas trabalhadoras do Brasil e sua aplicação representa uma séria degradação do seu nível de vida e todas as sequelas sociais que daí decorrem;
  • O fascismo no Brasil é um subproduto da dominação imperialista e sua peculiar configuração histórica deriva de uma formação social calcada no capitalismo dependente e associado aos monopólios estrangeiros.

Então, em minha opinião a tática política mais acertada implica em produzir uma poderosa contraofensiva capaz de derrotar politicamente o fascismo, convertendo a luta pela democracia e a soberania nacional em um movimento abertamente anti-imperialista que enfrente o domínio do capital financeiro e abra caminho para uma transição ao socialismo.

Sublinho: tudo isso é absolutamente discutível. Afinal, algumas dessas proposições implicam em atitudes excludentes de certas alianças ou produzem prioridades específicas na construção política. Mas é melhor que se discuta apaixonadamente a conjuntura histórica, a tática política ou a relação entre tática e estratégia do que se reduza uma opção eleitoral às decisões políticas de maior fôlego. A tática eleitoral precisa estar subordinada à tática política, e não o contrário. A tática eleitoral deve ser guiada por apenas dois elementos principais:

  • Qual a tática política mais adequada para o momento histórico, isto é, qual a tarefa mais urgente que precisa ser cumprida para rumarmos em direção ao socialismo e como as eleições, a escolha dos candidatos e a atuação dos comunistas e revolucionários durante a campanha se articulam com ela;
  • Quais os fatos mais evidentes que permeiam as eleições, como chances de vitória, programa eleitoral, penetração entre as massas trabalhadoras, alianças eleitorais, etc.

Naturalmente, alguns colocarão maior peso em um lado da balança do que no outro. Mas se a unidade na tática política continuar preservada, a tática eleitoral guardará a sua aparente importância apenas passageiramente nos debates políticos.  

O debate da tática eleitoral está esquentando e logo toda esquerda estará irresistivelmente envolvida nele. No que tange a tática eleitoral creio que algumas considerações especiais podem ser adiantadas:

  • Esta não é uma eleição qualquer. A reeleição de Bolsonaro colocaria uma tensão assombrosa nas já frágeis e debilitadas instituições da restrita e cerceada democracia burguesa, podendo ser o passo definitivo em direção à sua almejada ditadura policial;
  • Ao mesmo tempo, uma vitória contra Bolsonaro representaria um duro golpe contra o fascismo e o projeto do imperialismo no Brasil;
  • Essa vitória eleitoral, porém, seria apenas uma vitória parcial, justamente pela natureza extra-governamental e extra-partidária do movimento fascista e, assim, exigiria ampliar e não arrefecer a contraofensiva antifascista que deveria ser convertida em um autêntico movimento anti-imperialista;
  • Infelizmente, o movimento popular e sindical foi incapaz (ou impedido), mesmo em momentos de grande mobilização, de desferir um golpe de morte contra o governo Bolsonaro, recaindo sobre as eleições a conclusão dessa tarefa pontual.

É difícil explicar como uma eleição é importante agora, sem que ela seja em geral. Penso que ela é de grande importância para a difícil situação concreta e imediata. Mas só o é porque o momento histórico é de grande gravidade há pelo menos uma década. Por conta da gravidade desse momento histórico, ele projeta a sua agudez em qualquer tarefa singular que se apresenta diante de nós. Se pensarmos apenas na política institucional, por exemplo, depois da eleição será a posse. Depois da posse será a formação dos ministérios. Depois será a construção de maioria congressual para reverter a política do imperialismo. Isso que ainda não podemos imaginar quantos infernos serão capazes de conjurar as forças do imperialismo dentro e fora do território nacional! E será assim até que o imperialismo e o próprio capitalismo sejam derrotados.

Para concluir essa breve reflexão, argumento que não devemos dar maior ou menor importâncias às eleições do que o próprio momento histórico atribui a elas. Não é hora para aventuras. Quem tem clareza de estratégia e de tática política, saberá se orientar corretamente na frente da urna eletrônica ou nos portões da fábrica e todo o campo de possibilidades correspondente.

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