A universidade brasileira na sociedade de classes

A universidade brasileira na sociedade de classes

Por: Cecília Brancher

Dou início a esse texto com a seguinte afirmação: a universidade não paira acima do modo de produção. Mas, o que isso significa? Ao se debruçar sobre os estudos da universidade brasileira, a partir de sua experiência concreta no movimento pela reforma universitária que tomou lugar no Brasil durante as décadas de 1950 e 1960, Florestan Fernandes preparou a publicação do livro Universidade brasileira: Reforma ou revolução? [1], que é, na verdade, um compilado de suas elaborações prévias para palestras e seminários sobre o tema. Nessa obra, que não perde sua atualidade mesmo que a publicação original date da década de 1970, o sociólogo tece diversas aproximações teóricas entre universidade e modo de produção e, mais especificamente, a universidade num país de capitalismo dependente como o Brasil. Da realidade do ensino superior à época, muito já se transformou. A ditadura militar, que teve início com o golpe de 1964, marcou uma das principais transformações já vividas no ensino superior brasileiro. Além disso, ela abriu as portas para o processo que assistimos se estender por décadas a fio: o crescimento agigantado do ensino superior privado, a mando dos igualmente gigantes monopólios educacionais [2], e o intencional estrangulamento do ensino público.

A universidade não paira acima do modo de produção, pois, enquanto instituição, é estrutural, econômica, social e politicamente vinculada à sociedade em que se estabelece. É a sociedade, portanto, que confere à universidade o seu sentido, seus ritmos, sua estrutura e a função social que ocupa. Nas palavras de Florestan, é o meio social que relaciona, historicamente, a instituição com as necessidades sociais por ela atendidas, dadas certas condições materiais e morais de existência social. Ou seja, as universidades não são um mundo em si e para si, mas uma realidade histórico-social condicionada pelas possibilidades de absorção e desenvolvimento material e espiritual da sociedade em que se estabelecem. Enquanto instituições-chaves dessa sociedade, cuja função está relacionada à produção de conhecimento, ciência, cultura, tecnologia e reprodução de relações sociais e do pensamento social dominante, as universidades refletem, ao mesmo tempo em que influenciam, outras instituições existentes. Assim, à elas cabe o papel ativo de formação de uma intelectualidade orgânica de classe e de quadros profissionais, técnicos e burocratas destinados a preencher determinados postos necessários ao Estado, à esfera produtiva, educacional, política, etc.

Então, qual é a particularidade da universidade em um país de capitalismo dependente? Vamos do começo. Historicamente, a universidade brasileira, que surge na forma de escolas superiores isoladas e rígidas, a partir da transferência da sede do reino português para o Brasil, se estabelece como uma reprodução mal-feita do modelo europeu de instituições de ensino superior. Digo “mal-feita”, pois, como tentei explicar anteriormente, a universidade não nasce como um mundo em si e para si; e ela não poderá se estabelecer, então, como a mera cópia dos modelos que, em seus países de origem, são submetidos a determinadas particularidades históricas e diferentes graus de desenvolvimento material e cultural. Assim, condicionada pela sociedade em que se estabeleceu (à época, sob o modo de produção escravista-colonial), a escola ou faculdade isolada criada no Brasil empobreceu severamente os modelos institucionais europeus, sobretudo francês e português (que já estava à época consideravelmente atrasado em relação aos demais). Afinal, a sociedade brasileira não era dotada de dinamismos capazes de absorver esses modelos integralmente, tampouco de interesse em absorver determinado padrão educacional. 

Para ilustrar a situação, pode-se considerar, por exemplo, o regime de cátedras que funcionou como a alma mater, o núcleo organizador do ensino superior brasileiro por dois séculos e meio. Esse regime, importado das universidades europeias para a maioria das instituições de ensino superior da América Latina tem sua origem ainda na Idade Média, quando as universidades eram organizadas tendo as cátedras como os núcleos centrais, que reuniam os mestres e seus discípulos aspirantes à universalidade do saber. Para Florestan, o convívio e o ambiente nas universidades europeias modernas contrabalançavam a rigidez do regime catedrático e permitiam algum grau de fermentação intelectual genuína, investigação independente e produção original de conhecimento. Já na escola superior brasileira, “um todo isolado, o começo e fim de si mesma”, a cátedra condenava a instituição a uma “autossuficiência educacional e intelectual” danosa à experiência universitária. Nela, o professor catedrático, um profissional nomeado pelo governo e vinculado aos interesses das profissões liberais, adquiria vitaliciedade e inamovibilidade: ele seria responsável pela mesma “cadeira” durante toda a sua trajetória na faculdade (em muitos casos preterida por suas outras ocupações profissionais e laços corporativos). O catedrático figurava no topo da hierarquia do corpo docente, ele próprio é quem selecionava seus professores assistentes e administrava os recursos destinados à sua cátedra. Inamovível e praticamente intocável.

Assim, já no princípio da história do ensino superior brasileiro, as faculdades e escolas superiores foram esvaziadas das funções de produção e difusão do pensamento crítico e original, corporificadas em uma estrutura rígida, arcaica, conservadora e inautêntica, e destinadas à formação de profissionais liberais compostos por uma pequena parcela de estudantes: os filhos das elites senhoriais que, em grande maioria, deixavam o país para complementar seus estudos em uma temporada na Europa. As primeiras escolas superiores abrangiam três principais áreas: Medicina, Engenharia Militar e Direito. Sua fundação estava diretamente relacionada às necessidades políticas, administrativas, econômicas e de controle do Estado e do governo surgidas com a transferência da Corte e, posteriormente, com o processo de formação do Estado Nacional: advogados, juízes, promotores, engenheiros militares, civis, químicos, médicos, cirurgiões, dentistas, farmacêuticos, funcionários do Estado, deputados, senadores, diplomatas, entre outros, eram os profissionais liberais e quadros requisitados para assumir funções na burocracia estatal. Entretanto, Florestan ilustra o caso do Direito: mesmo no período de consolidação do Estado Nacional emergente permanecemos presos ao Direito português e às instituições jurídico-políticas herdadas da era colonial. O que se montou foi uma “escola superior” despojada de suas funções criadoras. E, onde está o “busílis da questão”? Justamente, no modo como a sociedade brasileira participa da civilização moderna. 

Se durante todo o século XIX foram fundados no Brasil apenas 14 estabelecimentos de ensino superior, essa tendência começa a se transformar com a desagregação do modo de produção escravista-colonial e a passagem para uma economia capitalista competitiva, que já se torna predominante no início do século XX. Com a abolição em 1888 e a impulsão da vinda de um grande contingente de imigrantes europeus, a transição do motor da produção que antes era a força de trabalho escravizada, para a força de trabalho assalariada, intensifica o processo de urbanização e concentração da população nas cidades, com uma completa e profunda marginalização da população negra. Aos poucos, começa a crescer tanto a necessidade de formação superior e especialização de parte desse contingente de trabalhadores, quanto a pressão popular, sobretudo proveniente da camada média e branca, para a expansão do número de vagas e criação de novos estabelecimentos educacionais. 

Como é sabido, a transição do modo de produção escravista-colonial para o modo de produção capitalista dependente foi marcada pelo prolongamento e modernização dos laços de dependência com o exterior. E, evidentemente, isso repercute no modo como a sociedade brasileira opera para absorver essa demanda por expansão. Ao invés da criação de universidades verdadeiramente voltadas às necessidades sociais, culturais, tecnológicas e científicas daquela sociedade em plena ebulição, o que se criou foram meros conglomerados das antigas escolas superiores, unidas pelo título simbólico de “universidades”. No interior de uma economia dependente e no processo de formação de um Estado autocrático, a transformação capitalista e a expansão do regime de classes sociais não equacionaram o desenvolvimento com a aceleração da revolução burguesa, o que impediu, portanto, o estabelecimento de uma universidade educacionalmente criadora, voltada à produção do saber original e necessária àquele momento histórico.

A contrarrevolução de 1964 põe fim ao horizonte do reformismo burguês. E, assim, sob hegemonia do imperialismo estadunidense, a burguesia é impelida a aliar a função social das universidades aos desígnios do capital monopolista. Se, no seio das movimentações pelas reformas de base da década de 1960, o efervescente movimento pela reforma universitária mobilizou os estudantes e suas entidades, além da parcela progressista do movimento docente, a lutar pela transformação radical da universidade brasileira, a reforma universitária implementada pela ditadura em 1968 não passou de uma reforma “consentida”, uma panacéia que seguiu à risca o figurino dos Estados Unidos. O movimento de reforma, ao propor que fosse construído um novo tipo de universidade, vinculado às reais demandas do povo brasileiro, era uma resposta histórica às exigências transformadoras e ao padrão civilizatório que poderiam tomar lugar na sociedade brasileira. A reforma da ditadura militar, pelo contrário, serviu para adequar essa instituição-chave às necessidades do grande capital e seus monopólios. Por isso “consentida”, afinal, a modernização era necessária, mas não poderia ser a mesma reforma que defendiam os estudantes.

Sem a realização das reformas democráticas e nacionais, a contrarrevolução de 1964 consolidou uma ordem permanentemente autocrática e dependente, e as universidades transformadas passaram a funcionar como uma contraparte dessa dependência que se estendia a todos os planos: econômico, político, social, cultural, científico e tecnológico. Como isso se deu? Através do gigantesco incentivo fiscal à abertura de estabelecimentos privados de ensino superior, da adequação da produção de ciência e tecnologia aos interesses estratégicos dos latifúndios, monopólios e imperialismo, da ampliação da relação das universidades com os setores produtivos, da mão de ferro da repressão sobre as universidades públicas, movimentos populares e entidades estudantis, etc. Assim, a ditadura garante a vinculação profunda da universidade com o bloco de poder dominante: os monopólios, o latifúndio e seu “sócio-maior”, o imperialismo. Já não há mais possibilidade histórica de reviver um movimento como o da reforma universitária que marcou os anos pré-ditadura. O tempo das revoluções burguesas já passou. Hoje, a luta por uma universidade “educacionalmente criadora, intelectualmente crítica, socialmente atuante, aberta ao povo e capaz de exprimir politicamente os seus anseios mais profundos” se insere na luta pela construção do socialismo no Brasil. 

“Tornar politicamente possível o que se sabia ser tecnicamente possível e historicamente necessário” (Florestan Fernandes)

[1] O livro foi reeditado e publicado pela Expressão Popular em maio de 2020. Sua primeira publicação ocorreu em 1975, pela Editora Alpha Omega.

[2] Segundo pesquisa realizada pelo professor e ex-reitor da UFRJ Roberto Leher, empresas que compõem o rol dos 200 maiores grupos econômicos com atuação no Brasil interferem diretamente na educação básica, profissional e superior, por meio de uma série de coalizões. Podemos citar, por exemplo o Todos pela Educação, uma coalizão voltada à educação básica, que logrou importante influência no texto final do Plano Nacional de Educação (PNE). Entre os principais grupos privados que compõem o TPE estão a Gerdau, a Fundação Bradesco, Fundação Itaú Social, Instituto Unibanco, Carrefour, Fundação Lemann, Ambev, e outros. Além das coalizões, existem os gigantescos monopólios da educação privada, como a Kroton-Anhanguera que, sozinha, possui a mesma quantidade de estudantes (incluindo a modalidade EaD) das 63 universidades federais brasileiras, somando cerca de 1,2 alunos. (Mais dados da pesquisa podem ser encontrados no livro Universidade e heteronomia cultural no capitalismo dependente: Um estudo a partir de Florestan Fernandes, Roberto Leher, 2018). 

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