Jorge Amado: o romancista do povo
Por: Pedro Luiz da Cunha
Nada me impressiona mais na leitura do que as emoções que ela é capaz de suscitar. Foi assim que as lágrimas fáceis herdadas de minha mãe caíram quando li Capitães da Areia (1937), meu primeiro contato com a obra de Jorge Amado. A partir de então, iniciei um prazeroso caminho pelos escritos de um autor que, acima de tudo, pensou o Brasil.
E pensar o Brasil fora justamente o mote da década de 1930, período das primeiras publicações amadianas. É neste momento que fermentaram tentativas originais de interpretações históricas e sociológicas da realidade social brasileira, com a clássica tríade formada por Casa Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre, Evolução política do Brasil (1933), de Caio Prado Júnior e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda. Na literatura, o “romance social” da década de 1930 de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Pagu etc. tomara forma ao contemplar personagens e cenários até então esquecidos por nossos escritores: o nascente proletariado, o migrante nordestino, a seca, a luta de classes.
O menino grapiúna, oriundo de abastada família produtora de cacau no sul da Bahia, logo aos 20 anos aproximou-se do Partido Comunista do Brasil (PCB). Esta aproximação marcaria fundamentalmente sua produção literária ao sedimentar a elaboração de um projeto criativo marxista que transpôs a linguagem militante para uma literatura engajada com as demandas de organização da classe trabalhadora no Brasil.
Suas publicações da década de 1930 – exceto País do Carnaval (1931), seu romance de estreia – são marcadas por uma forte inspiração soviética, exprimindo características do romance proletário ao sobrepor a coletividade ao individualismo e ao psicologismo atribuídos à literatura burguesa. É neste contexto que Cacau (1933), Suor (1934), Jubiabá (1935), Mar Morto (1936) e Capitães da Areia (1937) retratam a existência sobretudo de grupos marginalizados, marcados pelas chagas da dura produção cacaueira, dos conflitos urbanos nos cortiços, nas ruas e no mar. As publicações amadianas do período são caracterizadas pelo avanço, no decorrer dos romances, da conscientização de suas personagens. É assim que, entre ratos e baratas da precária moradia, floresce a solidariedade no “Casarão 68” de Suor; Antônio Balduíno, de Jubiabá, procura superar os limites impostos para a população negra no período pós-abolição e Pedro Bala, de Capitães da Areia, se torna um líder operário.
“- Proletários de todos os países, uní-vos!
Grito que poderia leva-los à cadeia, fazer com que os surrassem e deportassem, mas que poderia rebentar as cadeias, acabar com as surras e as deportações.” (Suor, 1934)
Por sua atividade militante, Jorge Amado será preso duas vezes após o golpe do Estado Novo, em 1937. Diversos militantes do PCB serão presos, torturados e assassinados. O partido, como organização centralizada, deixa de existir na prática, restando grupos de comunistas esparsos pelo país. É neste contexto que o autor escreve, em Buenos Aires, a romanceada biografia de Luiz Carlos Prestes, publicada em espanhol em 1942 e em português em 1945. Trata-se de louvável esforço na luta pela anistia de Prestes e de outros presos políticos, ao passo que representa uma contribuição nas reivindicações democráticas deste período.
A partir de 1943, com a reorganização do partido liderada pela Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP) e a adoção, após a Conferência da Mantiqueira, de uma política de União Nacional, o PCB adotará uma tática de amplas alianças com setores progressistas, no esforço de enfrentamento do nazismo externamente e de reminiscências do fascismo no plano interno. Esta política implicará em compreensões etapistas da revolução brasileira, expressas nas formulações de enfrentamento ao capital estrangeiro e ao imperialismo em primeiro plano. Sob influência desta concepção nacionalista, Jorge Amado irá publicar Terras do Sem Fim (1943) e São Jorge dos Ilhéus (1944), um retorno ao universo da produção de cacau no sul da Bahia, que expõe o cenário de resistência entre pequenos lavradores, fazendeiros e coronéis frente ao avanço do capital estrangeiro na propriedade da terra. A luta de classes dos romances da década de 1930, que opunha “ricos x pobres; burgueses x proletários” passa a ser substituída por uma caracterização geral do “povo” brasileiro, englobando trabalhadores rurais e latifundiários na luta contra grandes conglomerados capitalistas internacionais.
E será assim, como Romancista do Povo, que Jorge Amado apresentará sua candidatura para deputado federal em 1945. O PCB surge neste processo eleitoral como partido de massas, contando com o prestígio da União Soviética no imediato período pós-guerra e com a liderança de Prestes, eleito como secretário-geral em 1943. Além de Jorge Amado, os comunistas elegem mais 13 deputados para a bancada constituinte e Prestes para o Senado. Yedo Fiuza, o candidato do partido para a presidência, recebe 10% dos votos válidos, demonstrando a expressão nacional que alcançara o partido. Na assembleia, o autor terá uma importante atuação na defesa da liberdade religiosa, elaborando a emenda constitucional que garantiria a liberdade de culto no país. Neste período, Jorge Amado publica Seara Vermelha (1946), romance de profundo caráter social que narra a hercúlea jornada de migrantes nordestinos rumo a São Paulo, abarcando o cangaço e os misticismo sertanejos.
“Mas não, não só com a cabeça os comunistas fazem a sua política, como se ela comportasse apenas cálculos imediatistas e frios objetivos. Para eles política era vida e a vida se vive com a cabeça que raciocina e com o coração que ama”. (Agonia da Noite, 1954)
A onda democratizante do país seria logo contida com o avanço da reação a nível internacional nos primórdios da guerra fria. No Brasil, o governo entreguista de Dutra, aliado dos EUA, perseguira os comunistas de maneira implacável, cassando seu registro eleitoral em 1947 e seus mandatos em 1948. Jogado novamente na ilegalidade, Jorge Amado vai para Paris e em seguida para Praga, na Tchecoslováquia. Lá, no Castelo da União dos Escritores, o autor desenvolverá a expressão mais acabada de sua produção romancista soviética. Em Subterrâneos da Liberdade (1954), publicado em três volumes (Os ásperos tempos, A agonia da noite, A luz no túnel), o autor retorna para os anos de perseguições do Estado Novo, ao construir uma narrativa heroica sobre o partido e seus militantes: a luta clandestina da comunista Mariana, que se apaixona e vive um belo romance proletário com seu camarada João; os desafios de José Gonçalo no enfrentamento ao latifúndio e ao imperialismo; a greve dos estivadores de Santos; a recusa do embarque de mercadorias para a ditadura franquista; a solidariedade internacional na formação das falanges do exército republicano durante a guerra civil espanhola… Está tudo lá. Nesta que seria a última obra com tais características, a estruturação do romance amadiano atinge seu ápice, sendo assumidamente utilizada como modelo em escritos posteriores.
“Só desejo uma coisa: viver, entender a vida, amar os homens, o povo inteiro.” (Tenda dos Milagres, 1969)
Em 1956, após as denúncias dos chamados “crimes de Stálin” no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética o movimento comunista internacional seria fortemente abalado. No Brasil, o PCB não atravessaria incólume a celeuma. Jorge Amado, destacado quadro do partido, assume uma postura em defesa de amplo debate sobre as questões levantadas pelo relatório Khrushchov, debate que acaba ocorrendo à revelia da direção partidária, dada a morosidade em iniciar as discussões – provenientes, em um primeiro momento, da negação da direção em acreditar nos relatos do XX Congresso que foram lançados na imprensa e da demora do delegado do PCB enviado a Moscou, Diógenes de Arruda Câmara, em retornar ao Brasil. Os confrontos internos no partido foram intensos, e as contendas ocorreram até abril de 1957 quando, em defesa da unidade e contrário aos ataques direcionados à União Soviética, a direção partidária decidiu encerrar as discussões. Não há uma data exata em que se possa fixar a saída de Jorge Amado do partido, mas considerando seu silenciamento em meio às discussões, é possível apontar que no início de 1957 o autor já havia se desligado do PCB, descrente quanto as possibilidades de mudança da organização, dado os rumos que haviam tomado os debates de 1956.
É neste contexto que o autor publica Gabriela, cravo e canela (1958), romance que marca o abandono do discurso político inflamado e inaugura uma fase profundamente influenciada pelas ideias de democracia racial oriundas do pensamento freyreano. Os escritos de Jorge Amado passam a priorizar cenários e personagens que até então apareciam de maneira de maneira lateral em sua obra: o sincretismo religioso, a malandragem, as prostitutas, os vagabundos, os pescadores, a camaradagem das ruas. Em geral, em uma memória política de esquerda, esta fase da obra amadiana é relegada ao esquecimento. Trata-se de leitura seletiva dos pontos considerados “positivos” da produção de Jorge Amado, ou seja, a literatura engajada com o socialismo. E de fato, existem certas heranças que os comunistas devem renunciar¹. Mas não esquecer: Jorge Amado foi o romancista do povo e o artista da mestiçagem³.
“[…] iam conseguindo o maior dos eventos: conseguiam viver quando tudo se unia para tornar impossível tal empresa. Como dizia Jesuíno, pobre já fazia demais com viver, viver resistindo a tanta miséria, às dificuldades sem fim, àquela extrema pobreza, às enfermidades, à falta de toda assistência, viver quando já não existiam condições senão para morrer.” (Pastores da noite, 1964)
A ideia da mestiçagem toma força no cenário nacional na década de 1930, momento, como já visto, de grande discussão sobre a formação social brasileira. Gilberto Freyre, principal expoente das considerações sobre democracia racial, tem como interlocutores escritores versados nas teorias raciais do século XIX, que consideravam o “cruzamento das raças” como elemento de degeneração. É neste contexto que a mistura entre indígenas, negros e brancos assume uma valoração positiva de brasilidade mestiça, onde se considera inexistir o conflito racial, tornando o país um modelo de convivência harmônica. Jorge Amado assume tal ideia, e chega a relativizar o racismo no país, considerando a subalternidade da população negra uma questão de classe. Hoje tais noções são – e devem ser – totalmente criticadas, tendo em vista a compreensão do racismo como elemento estrutural da sociedade brasileira. Não obstante, está presente e fundamenta os escritos desta segunda fase da obra amadiana.
Após a publicação de Gabriela, Jorge Amado lançou quase 20 livros até sua morte, em 2001, além de uma publicação póstuma em 2008. Dentre estes, grandes clássicos como Dona Flor e seus dois maridos (1966) e Tieta do Agreste (1977). No entanto, para as considerações sobre a mestiçagem presente em sua obra, considero suficiente breves menções sobre dois textos fundamentais: O Compadre de Ogum (1964) e Tenda dos Milagres (1969).
No primeiro, Massu, um homem negro e adepto do candomblé, decide batizar seu filho na Igreja católica, mesmo sem saber quem seria o padrinho. Muito afeito às suas amizades, decide consultar aos orixás para obter uma resposta. Eis que o próprio Ogum decide que será o padrinho da criança. Entre confusões e ações travessas provocadas por Exu, que impossibilitam o curso normal da chegada do orixá guerreiro, no dia do evento Ogum baixa à terra incorporando o padre que realizaria o batizado. Aqui temos a expressão mais afiada da noção de sincretismo religioso presenta na obra de Jorge Amado: um candomblecista batiza seu filho na igreja católica enquanto o padre recebe um orixá. Para o autor, esta mistura seria a essência em particular do povo baiano, mas vislumbrada como horizonte de convivência harmônica entre os diferentes do povo brasileiro.
No segundo, Jorge Amado reelabora debates das primeiras décadas do século XX ao incorporar no seu personagem Pedro Archanjo um defensor das ideias da mestiçagem, frente ao professor da faculdade de medicina Nilo Argolo (uma clara referência ao médico Nina Rodrigues, principal expoente das teorias raciais no Brasil). Amado fala na voz de Archanjo: “Se o Brasil concorreu com alguma coisa válida para o enriquecimento da cultura universal foi com a miscigenação — ela marca nossa presença no acervo do humanismo, é a nossa contribuição para a humanidade”. Eis, segundo o autor, a nossa singularidade.
A miscigenação amadiana não é ausente de hierarquia, discriminação, miséria, desigualdade, pobreza e de luta. Há, no entanto, uma visão positiva da realidade que enlaça temas cotidianos em uma narrativa bem-humorada que consagrou diversas adaptações de suas obras para a televisão, alcançando um público mais amplo e em geral, alheio à leitura. Portanto, não há como refletir sobre a cultura brasileira sem considerar aquele que sobre ela mais refletiu.
Dos romances proletários ao protagonismo da miscigenação, Jorge Amado “profanou o livro e sacralizou a rua”². É um autor eminentemente humano e contraditório. Jorge Amado escreve sobre os subalternos, os marginalizados. Escreve sobre as franjas de cultura que florescem nas fissuras da opressão. Pensa o povo. Escreve o povo.
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1. PRESTES, Anita. A que herança devem os comunistas renunciar?. 1980. Disponível em: https://www.ilcp.org.br/prestes/index.php?option=com_content&view=article&id=161:-a-que-heranca-devem-os-comunistas-renunciar&catid=26:documentos&Itemid=146.
2. SIMAS, Luiz Antonio. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/12/jorge-amado-profanou-o-livro-e-sacralizou-a-rua-diz-simas.shtml
2. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O artista da mestiçagem. Disponível em: https://www.companhiadasletras.com.br/sala_professor/pdfs/CL_OuniversodeJorgeAmado_artistadamestcagem.pdf
Referências
CALIXTO, Carolina Fernandes. História e memória da trajetória político-intelectual de Jorge Amado. 2016. 408 f. Tese (Doutorado) – Curso de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016.
ROSSI, Luiz Gustavo Freitas. A militância política na obra de Jorge Amado. Disponível em: https://www.companhiadasletras.com.br/sala_professor/pdfs/CL_OuniversodeJorgeAmado_militanciapolitica.pdf