Estado, Governo, Regime: comentários dalém tweets

Estado, Governo, Regime: comentários dalém tweets

Por: Ronald Rocha

“Não me parece que de tantas cartas que escrevi a amigos e a estranhos se possa apurar nada de interessante, salvo as recordações pessoais que conservarem para alguns. O tempo decorrido e a leitura que fizer da correspondência lhe mostrará que é melhor deixá-la esquecida e calada.”

Machado de Assis. Carta para José Veríssimo, 21/4/1908


A insuficiência do ativismo digital

Provocado por convite generoso de antigo amigo e camarada, este artigo agradece ao Manifesto Petista por acolher uma contribuição forânea, que o considera como relevante lugar de formulação e interlocução. Povoado por ideologias, vinculações partidárias e concepções políticas diversificadas, este blog tem sua importância realçada no atual período sombrio da luta entre classes no País. Como espaço editorial, valoriza o padrão machadiano, que separa o interesse público das pessoalidades. Quão pueril pode ser a palavra nos microposts que, puramente volitivos, desvanecem a teoria e a verdade nos caprichos e catarses da pequena robinsonada, cheia de mexericos, xingarias e fake News!

Semelhantes veículos têm a preferência da extrema-direita, que precisa cancelar os conteúdos. Infelizmente, converteram-se também na referência para inúmeros ativistas. No entanto, a formulação qualificada é imprescindível para que aconteça o processo humano-emancipatório. Claro está que o problema não reside na regra draconiana da ferramenta ou na cultura da superficialidade imposta por seus limites, mas na impotência do indivíduo isolado, que acaba venerando-as como Deus ex machina euripediano. Se for inspirado em veleidades revolucionárias, padece na vã sensação de influenciar os “seguidores” na cruzada virtual contra os poderosos esquemas monopolista-financeiros reais.

De fato, são recursos insuficientes para indagar sobre as essências das coisas e até sobre os seus vestígios aparentes. No máximo, servem para se fazerem denúncias e agitações. Inobstante, vêm sendo vistos como ambiência exclusiva da ideação e da comunicação. Para ilustrar o equívoco, vale utilizar o reductio ad absurdum euclidiano: Marx conseguiria elaborar sua obra recorrendo somente aos telegramas que assombraram o mundo em 1844, com a transmissão de Washington a Baltimore? Mesmo temas de média complexidade, como as características do Governo Bolsonaro e de seus apoiamentos, exigiriam caminhadas mais ásperas do que as meras invectivas de “fascista” e “genocida”.

Se o politicismo já é um péssimo conselheiro da própria política, o que se diria das quimeras que a “uberizam”, em vez de compreendê-la como expressão da sociedade civil e suas contradições? Óbvio: é preciso rejeitar, como retrógradas, quaisquer aversões ao desenvolvimento nas forças produtivas e nos seus meios comunicacionais derivados, caindo em certo neoludismo anti-informático. Muitos softwares – como correio eletrônico, whatsapp e administradores de portais, entre outros –, são instrumentos notáveis, que de forma nenhuma estimulam, per se, os preconceitos a textos e arquivos mais ou menos extensos. Ao contrário, propiciam eficiências e liberdades superiores, que são progressistas.

Mais do que sobre ilusões nos embates vulgares pelo “poder” – restringidos a resultados eleitorais, vontades “livres” do “gestor” e ideias-força –, pesam contra o nanodiscurso as Glosas críticas marginais…: é um mito supor que o Estado se automodifique para resolver os problemas basilares da sociedade civil, pois o desejo aprisionado às suas instituições – inclusive a cidadania – constitui a expressão conservadora da própria coisa primária que os suscita. O zás-trás, como a política, nunca é causa sui. Marx elucidou em 1844 – quando Morse telegrafou “Que obra fez Deus!” – as limitações de uma transformação social “com alma política”. De fato, a revolução exige ações políticas de “alma social”.

A dimensão crítica das lutas institucionais

O repto à mera positividade se torna indispensável à compreensão dos enganos possibilistas, mesmo se vestidos com roupas jacobinas. O enfoque ontonegativo – que jamais homenageia o rechaço à práxis política, mas sim promove a visão consciente sobre o Estado, indispensável a partidos socialistas – é crucial para se compreenderem os contornos e fracassos dos remendos internos ao capitalismo, colecionados em dois séculos nas inúmeras esquinas do Planeta, como também os êxitos mais ou menos profundos e duradouros dos combates proletários, sempre que situações revolucionárias entreabriram, objetivamente, os cenários possíveis à metamorfose radical da ordem social vigente.

Ademais, confirma o mainstream marxista, inclusive o alerta lenineano ao “esquerdismo” como “doença infantil”, que resultou em uma dupla conclusão. Durante o século XIX, as instituições burguesas foram superadas nos planos teórico e doutrinário. Mas, contrariamente às falácias catastrofistas, voluntaristas e abstencionistas, é incorreto afirmar o mesmo sobre suas implicações político-práticas. Tal contradição evidencia os eventuais desequilíbrios entre categorias no cume da sociedade política – poder, regime, governo – e sua utilização displicente ou aplainada. Muitos nem sequer imaginam que seja importante as distinguir, creditando quaisquer preocupações a preciosidades acadêmicas.

Togliatti, em curso para operários italianos exilados na URSS – Lições sobre o fascismo, 1935 –, observou: “quando nos equivocamos na análise, nos equivocamos também na orientação política”. Considerem-se as fantasias: o Estado seria neutro e seu conteúdo conformado pelos pronunciamentos eleitorais; as políticas interiores à ordem conseguiriam reverter a reprodução metabólica e a lógica do capital, bem como anular seus reflexos políticos e axiológicos; a posse no Governo Central seria o mesmo que assunção ao “poder” ou, como corolário, afastar-se da Presidência significaria perdê-lo; a conformação do regime político apenas decorreria da conduta palaciana, direta e mecanicamente.

A sinonímia possibilista entre governo e poder

São misérias intelectuais quase unânimes. Após participar de manifestações contra o Congresso e o STF, Bolsonaro, acionando a face conciliatória para facilitar os entendimentos “no topo”, rebateu a pecha de autogolpismo: “Eu já estou no poder; já sou o presidente da República.” O mantra é repetido exaustivamente, à direita e à esquerda. Durante o processo para depor Dilma Rousseff, os porta-vozes da contrarrevolução conservadora em ascensão repetiam que o “petismo” e o “lulismo” queriam manter-se no “poder” ad aeternum, acusação que se robustecera desde a célebre Ação penal 470, em 2012. Como resposta, os golpistas foram também denunciados por subirem ao “poder” sem o sufrágio.

A ironia hegeliana da história é que, anteriormente à débâcle, a grande maioria dos situacionistas – no romantismo da militância e na sensação dos eleitores – se achava igualmente no “poder”, só negando a calúnia de que desejariam mantê-lo per omnia saecula saeculorum. Após 2016, os mesmos partidos e segmentos que o impeachment lançara na oposição devolveram o “insulto”, asseverando que Temer galgara o “poder” sem ter sido legitimado pelo voto, esquecendo-se de que o conteúdo essencial do Estado ficara inalterado, sequer havendo modificações na sua forma republicano-federativa e nem, basicamente, no atual regime político. Transmutaram-se o governo e a correlação de forças.

Como paródia sobre uma obra felliniana, la nave va no carrossel de análises que pretendiam a posse do “poder local” em 2020 e anteveem o embate pelo “poder central” em 2022, entre outras incursões ao funeral eclético das categorias fundamentadas na realidade. Imiscuiu-se na vida nacional uma tradição politicóloga do senso comum estadunidense que, ao bel prazer, usa indistintamente conceitos sobre substâncias diferentes. Referindo-se a governo como pessoa para quem o contribuinte paga o imposto e o servidor trabalha, olvida o Estado e troca o regime político pelo establishment ou “sistema”. Tal cacoete foi endossado pelo presidente-chefe de milícias, porém, diga-se, não solitariamente.

O modismo se instalou, em parte, pelo complexo nelsonrodrigueano de vira-latas, um subproduto grotesco da velha Colônia e do “novo” capitalismo dependente. A sua função principal, que o faz proliferar de cima para baixo na pirâmide social, é nutrir um lusco-fusco capaz de glamourizar o receituário fácil, mascarar os desafios incômodos e camuflar o jugo burguês. Decerto, a tematização da matéria requer um maior esforço, comparativamente aos microrrecados em cuja caixinha nem mesmo a marretadas entraria. Muito ao contrário do que a inapetência empirista pela teoria por crer, o cuidado com a correspondência entre significado e significante nada possui de uma tertúlia mental irrelevante.

A Democracia e sua turris ebúrnea

Algo semelhante sucede com a questão chave do atual período político: a batalha democrática. Os reclames oposicionistas vêm destacando, em dimensão apenas positiva, o lema “Democracia”. Como restou provado nas polêmicas dos anos 1980, a exaltação do seu pretenso “valor universal” remete a uma genericidade abstrata que, sem os demais níveis da realidade, vela e deforma o conceito em seus próprios ser social e nexos concretos, sonegando-lhe a particularidade histórica de classe. Foi assim, pela via de uma revisão inspirada em fundamento e preceito neokantianos, que o liberalismo acabou hegemonizando a II Internacional.

O Noumenon – recuperado pelo filósofo de Königsberg desde a categoria que Platão fincara no “puro pensar”, como “realidade superior” – se localiza em uma esfera misteriosa: uma essência que jamais aparece aos sentidos e, portanto, alude a objeto apriorístico, inatingível pela experiência. O contencioso existe não em reconhecer a objetividade, que também o marxismo acolhe como princípio, mas em postular uma “coisa em si” – Ding an sich – imune à subjetividade, à cientificidade, à qualificação. Admite menção predicativa, mas seria incognoscível, vale dizer, afirmar-se-ia naturalmente, restando aos sujeitos apenas representá-la.

Tal enfoque – passivo – transita bem ao largo das percepções inovadoras e ativas das políticas produtivas. Substantivado e residente na sociabilidade própria do capital, o termo “Democracia” vive confortavelmente no melhor direito constitucional burguês, na doutrina liberal sobre o Estado, na mídia conservadora e no discurso de partidos adaptados, reproduzindo sensos comuns. Todavia, tende a entrar em crise conforme a conjunção de forças, em conjunturas com parca presença proletária nos embates, guerras externas, conflitos intestinos agudizados e surtos contra ou pró-revolucionários, fenecendo em regime fascista configurado.

Ademais, tem conteúdo gelatinoso. Em seu nome o golpe de 1964 e sua ordem foram operados pelas Forças Armadas, combatidos pela oposição, abdicados pela transição conciliadora, negados pela Constituinte, nomeados em contenciosos “pacíficos”, incensados pela reação bolsonariana. Hoje, são repudiados amplamente: quando resistentes ligados a distintas ideologias e doutrinas combatem o projeto autogolpista, o termo “democracia” passou a traduzir, espontaneamente, no campo das forças populares, a intenção de salvar o regime político e os direitos fundamentais cristalizados na Constituição de 1988.

O sentido prático do ânimo tático

“Estado Democrático de Direito” e “Democracia” tornaram-se apelidos metafísicos do regime político. Seus evocadores pendulam entre reivindicar o seu retorno, pois já estariam destruídos, e a sua manutenção, pois antes parcos do que mortos. Juízos nutridos na confusão entre Governo, Estado e Regime, há também quem os julgue inviáveis na formação econômico-social capitalista, inspirado na tipologia ideal weberiana em versão paroxísmica. Tal concepção é utópica – só poderia efetivar-se caso desaparecessem integralmente as mazelas e carecimentos –, além de paralisante: ninguém luta para manter o que julga inexistente ou, pior, impossível.

No Brasil o Estado possui a forma de República Federativa, com entes autônomos – União, estados-membros, municípios – e partição montesquiana dos “poderes” entre Legislativo, Executivo, Judiciário, como elaborado pela burguesia revolucionária nos setecentos. Conforme a reinterpretação marxista, o termo “ditadura” se refere a todo Estado e também a certos regimes políticos singulares. Mas de modo nenhum especifica um tipo estatal entre os vários – a espécie de “poder autoritário” –, de vez que o seu conjunto abarca, em termos de conteúdo, intrinsecamente, a coerção estrutural de classe. Nem qualifica o governo, simples gabinete com atribuição executiva.

Já o regime político se refere às instituições amalgamadas, como todo historicamente constituído em conflitos mundanos, por meio das quais o Estado se organiza internamente ou em suas relações para fora, visando a garantir que a classe hegemônica exerça o poder sobre território delimitado e suas formações humanas, combinando a edificação e administração do consenso com a repressão de fato e potencial, em dosagens tangidas pela correlação de forças e os anseios fundamentais envolvidos, regulando as disputas e atividades públicas, inclusive os liames que mantêm as duas esferas da sociedade – civil e política – e de ambas com os diferentes órgãos detentores de autoridades.

Tais considerações de modo nenhum autorizam conclusões doutrinaristas, que atiram como tijolos as rigorosidades na tática. Se os princípios movessem as massas, lembra o célebre dirigente antifascista italiano, “poderíamos ser eremitas, ir para uma floresta e ficar lá, adorando o comunismo”. Sem arrogâncias, é inevitável conviver com a lente através da qual o pragmatismo e o senso comum democrático veem a tabula rasa, mas sem repeti-la como papagaio. Nas disputas vivas, decanta-se o vocábulo difuso da comunicação imperfeita entre os setores progressistas, reunindo acordos em favor da unidade prática. Concessões devem ser feitas, porém, zelando pelas convicções teóricas.

A concretude necessária da verdade política

Não é o caso de aceitar o conselho dado a Sancho por Teresa, em Dom Quixote: largar “lé com lé e cré com cré”. O desafio, vinculado ao problema fundamental na filosofia – relação entre a consciência e o ser – e à teoria do conhecimento alicerçada na ontologia do ser social, é irrenunciável para uma reflexão sobre as doutrinas e realidades, inclusive a estratégia e a tática, sem as quais o fazer político tatearia. Se alguém pensa que, mesmo em pleno século XXI, esse truísmo ainda precisa de uma demonstração, como teorema imune aos ataques matemáticos, deve antes atentar para mudanças possíveis na conjuntura e outras no plano histórico, todas com alta carga de interesse proletário e popular.

Para substituir a essência do Estado, isto é, o Poder, a única maneira é uma revolução política de índole socialista. Para manter o regime democrático, é preciso barrar o autogolpe, até a derrota final da reação bolsonariana. Para trocar o Governo Federal, basta – o que difere de facilidade – vencer a próxima eleição presidencial e garantir a posse das candidaturas democrático-progressistas. Ocorre que as escolhas sobre as metas e os meios estão longe dos meros desejos e contingências, pois têm que prestar um tributo à exterioridade. Precisam de conceitos para reconhecer, avaliar e agir consequentemente, retornando, portanto, como subjetividade na práxis, às objetividades antes interiorizadas.

A resistência deve levar em conta que os atores políticos – sejam da ordem ou da contraordem –, inclusive os próceres do capital e os revolucionários, lidam com heranças passadas e suas tradições, condições reprodutivas das riquezas e vidas, períodos na luta e suas materialidades, conjunturas e correlações de forças, dramas e reivindicações populares, iniciativas e manobras multilaterais, com vetores complicados, relacionados e relevantes, no interior dos quais todos e cada um, individual ou coletivamente, fazem não aquilo que desejam, mas o que podem, conforme as volições recriadas e potencializadas pelos sujeitos no campo das múltiplas determinações que abrem as possibilidades reais.

Daí a importância da elaboração, da compreensão e do ajuste conceituais, cujas necessidades nunca podem ser vistas como querelas terminológicas, pois sugerem, provocam ou no mínimo predispõem os sujeitos, ao suscitarem expectativas, conclusões, valores, condutas, políticas e ações. Na tática, trata-se de – sem cair no espontaneísmo, impressionismo, achismo, empirismo e pragmatismo, primos do irracionalismo – sacar das experiências particulares o seu elemento universal-concreto, possibilitando que os pioneiros sociais compreendam o terreno que pretendem alterar e onde se movem, para poderem identificar, hierarquizar, organizar e, ao fim e ao cabo, aplicar suas tarefas imediatas.

Ronald Rocha, membro do Instituto Sérgio Miranda (Isem)

Publicado primeiro em: http://www.manifestopetista.org.br/2021/05/23/estado-governo-regime-comentarios-dalem-tweets/

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