Jogando xadrez com a morte
Por: Giovanny Simon
Não sou crítico de cinema, nem enxadrista, apenas analista político amador. Mas as consequências da recente eleição para a Câmara dos Deputados me lembraram a obra-prima de Ingmar Bergman – O Sétimo Selo. No roteiro do cineasta sueco, um cavaleiro que retornava das cruzadas é visitado pela Morte, personificada numa figura sombria. A Morte avisa-o que vai levá-lo. Ele afirma que seu corpo estava preparado, mas não sua mente. Ele propõe, então, um jogo de xadrez que o manteria vivo enquanto a partida durasse. A Morte concorda e, a partir dali, o cavaleiro Antonius Block passaria um tempo procurando respostas para suas perguntas cósmicas, existenciais e as razões para o “silêncio de Deus”.
Faço um paralelo com esse filme apenas para ilustrar que a maioria da oposição de esquerda jogou xadrez com a Morte, esperando ganhar tempo ou vencer alguma posição tática apenas para, finalmente, acabar entrando de vez na Danse Macabre de Bolsonaro e Artur Lira.
O filme de Bergman é ambientado numa Suécia medieval arrasada pela Peste-Negra, cujos irracionalismos eram talvez mais justificáveis num estádio social de pequeno desenvolvimento das forças produtivas, comparados às suas versões requentadas em nossa época do capitalismo tardio.
Em uma das passagens do filme, logo no início, Antonius Block e seu escudeiro param para pedir direções a uma pessoa. Todavia, se tratava de um cadáver vitimado pela peste-negra. O escudeiro afirma que na sua mudez, a resposta foi muito eloquente.
Em nossa época, no Brasil arrasado pela Peste respiratória da Covid-19, a pandemia já deixou uma pilha de mais de 230 mil cadáveres. A mudez dos mortos e seus funerais silenciosos também nos mostram uma direção clara: quem joga com a morte, para ela caminha. A eloquência dos 230 mil cadáveres de brasileiros e brasileiras deveria ser lição suficiente para mostrar que não há possibilidade de se arrancarem concessões da direita tradicional, cúmplice daquilo que alguns têm chamado de necropolítica.
A esquerda reformista renunciou de sua posição como “tribunos do povo”, no conceito lenineano do termo, que foi também recuperado por Lukács em seu texto de crítica literária Tribuno do povo ou burocrata. O tribuno do povo é aquele representante dos explorados e oprimidos, em oposição ao burocrata, que denuncia que os problemas imediatos estão ligados ao desenvolvimento geral do capitalismo. O burocrata, por outro lado, se amarra ao imediatismo de duas faces, seja em posições recuadas que só se importam com aquilo que é imediatamente possível, seja em um voluntarismo infantil que despreza o ânimo das massas.
Ao renunciar a uma candidatura da oposição de esquerda, para entrar no barco furado de Baleia Rossi e Rodrigo Maia, a maioria dos partidos e dos parlamentares de esquerda pensava que conquistaria espaços na mesa diretora, e/ou, utilizava dos seus votos para pressionar Maia pelo impeachment. No final, nem uma coisa, nem outra ocorreu. O único resultado dessa “jogada de mestre” foi a humilhação vergonhosa de ter capitulado de sua independência e mesmo assim ser esmagado pelo bloco de Lira.
O resultado da eleição só demonstrou que o instinto primitivo da direita tradicional, também hegemonizada pelo imperialismo, é de se filiar ao poder e ao programa de rentismo e da vassalagem aos EUA. Partidos como PSL e DEM, que afirmaram ter migrado seus votos em virtude do apoio de partidos de esquerda ao bloco de Maia, parecem ter feito a verdadeira manobra de mestre. Numa das cenas d’O Sétimo Selo, a Morte disfarçada de padre conseguiu extrair o plano de Augustus Block para sua partida. Da mesma forma, a esquerda que se entregou ao bloco de Maia, também entregou a Lira os votos que precisava para se eleger em primeiro turno, deixando sua dignidade, independência e capacidade de oposição também numa bandeja.
Os advogados da Frente Ampla são realmente uma piada. Primeiro, entregam todas as possibilidades de ampliar o poder de influência da esquerda no congresso através da negociação com a direita golpista; falham desastrosamente em construir a amplitude da sua Frente; e depois de sua poderosa negociação não dar resultados, após derrotados e humilhados, apelam ao povo e às ruas, e ainda têm a audácia de os culpar pela derrota. Uma argumentação dessas parece a patética tentativa de Augustus Block de derrubar o tabuleiro para recomeçar o jogo, quando ele já estava perdido. Ora, com quem vocês achavam que estavam jogando? Mais: para esses burocratas, o povo é apenas recurso político secundário, passível de ser acessado quando sua política palaciana falha. O pensamento tacanho de quem está engolido pelos corredores de Brasília não consegue ver horizonte do possível algum para além das conversas de gabinete.
O impeachment e a derrota de Bolsonaro só podem ser resultado de uma amplo movimento de massas. Aqueles que carregam consigo mandatos populares, ainda que em uma posição defensiva de minoria, deveriam estar se empenhando ao máximo possível para contribuir na construção de tal movimento. Acreditar que isso seria possível barganhando com a Maia. Ledo engano.
A proposta do PCLCP para construção da unidade é através de uma Frente de Esquerda, que consiga unificar as forças políticas interessadas em enfrentar o bloco de poder dominante cristalizado no tripé monopólios-latifúndio-imperialismo. Em nossas resoluções de 2013, ainda que precisem ser atualizadas, uma rica contribuição está sintetizada nas seguintes passagens:
O PCLCP defende, teórica e praticamente, com independência nosso projeto comunista, nossa estratégia e nossas táticas. A nossa concepção de Frente atende aos requisitos leninistas de intransigência teórica e flexibilidade tática. Estará assegurada a plena liberdade de crítica teórica e política às concepções reformistas (como eles poderão criticar as nossas posições). Nós nunca iremos rebaixar nossa linha política e programática à concepção pequeno-burguesa de “etapa” de “oposição antineoliberal”, noção vazia e confusa que assolou uma esquerda na defensiva. […]
Nem todas as forças que se unificarem em torno do programa da Frente estarão (ao menos no início) claramente comprometidas com a luta pela destruição do Estado burguês e a construção das relações de produção socialistas. O que significa que a Frente deve ter uma definição programática clara e constituir-se a partir do consenso em torno de princípios gerais e estratégicos mínimos que formem uma racionalidade e uma vontade unitária nacional; mas deve ser também ampla, visando articular o conjunto das organizações políticas representativas das forças sociais antimonopolistas, anti-imperialista e antilatifundiárias. Assim buscará congregar todas as forças contrárias ao bloco de poder vigente em uma unidade de ação programaticamente orientada, respeitando a especificidade de cada uma.
A Frente de Esquerda, para nós, é, portanto, ampla enquanto agrega todos os setores interessados em enfrentar o poder do bloco dominante. A questão fundamental da análise concreta da situação presente é: estão Rodrigo Maia e consortes interessados em enfrentar o bloco de poder dominante? Obviamente esta é uma pergunta retórica já que eles, ao contrário, são partes constitutivas do bloco de poder dominante.
Isso não elimina, porém, que seja possível empreender manobras táticas de unidade na ação, preservando a independência política, programática e teórica das organizações de esquerda. Aqueles que buscarem se adequar a esse conceito podem objetar dizendo que votar em Baleia Rossi e no bloco de Maia durante as eleições para a Câmara dos Deputados não rebaixou o programa. Ué? Filiaram-se a um defensor de todas as reformas anti-povo e anti-nacionais. Essas lideranças da direita tradicional sempre tiveram como sua prioridade máxima a realização dessas contra-reformas, é só ver a posição de Maia sobre a pauta da autonomia do Banco Central.
É possível fazer uma oposição verdadeira ao governo filiando-se acriticamente aos setores políticos com divergências apenas na ordem temporal de qual contrarreforma deve vir primeiro?
Os fãs de xadrez que me perdoem, mas esse é o momento de movermos nossas peças para outro tabuleiro: o da política de massas. As carreatas pelo impeachment foram um esforço louvável, mas estamos ainda apenas engatinhando para termos condições políticas e morais de levarmos a luta às ruas, aos locais de trabalho, estudo e moraria, nosso espaço de poder privilegiado. Para tal, é preciso construir uma Frente de Esquerda com programa tático mínimo de enfrentamento ao fascismo e à ditadura do capital financeiro. Precisamos de uma frente agora, não em 2022. O povo tem fome agora e morre aos milhares diariamente. Aliás, quem pensa que será possível “desgastar” Bolsonaro agora para vencer as eleições em 2022 é realmente muito ingênuo de imaginar que as próximas eleições serão livres ou mesmo legitimadas em caso de derrota do campo bolsonarista. Eles estão prontos para invocar todas as suas legiões fascistas, romper todos os setes selos do Apocalipse para apoiar um auto-golpe a qualquer momento. E nós? Vamos entrar com recurso no TSE ou no STF? Os mesmos órgãos que têm sido cúmplices do golpe e de todo o estado de exceção instaurado no Brasil?
Estou convicto que o fim dessa história não será tão semi-melancólico como o é na obra-prima de Bergman, em que se salvam apenas os artistas, portadores de um sexto-sentido e afastaram-se da Morte nos momentos decisivos. A vida vai prevalecer no final.