ELEIÇÕES NOS EUA| A falsa vitória que nossa não pode ser

ELEIÇÕES NOS EUA| A falsa vitória que nossa não pode ser

Considerações sobre os resultados parciais das eleições dos Estados Unidos da América


* Artigo de autoria de Marco Antônio Marcon P. M. – Militante da JCA

Na noite do dia 3 à madrugada de 4 de novembro de 2020 todos os olhos do mundo assistem gelados às eleições estadunidenses. Um duelo entre posições decrépitas não poderia gerar outra coisa senão a tensão e angústia de todos os povos do mundo, umbilicalmente ligados à política doméstica ianque, querendo ou não.

Para setores significativos da mídia mundial, e de certo consenso estabelecido nos marcos políticos das classes dominantes tradicionais, o apoio a Biden veio acrescido de todo um sentimento geral para uma possível “vitória tranquila”, uma “avalanche”, apostando na vitória da “consequência”, da “sobriedade” e do “bom senso” sobre uma “monstruosidade anormal” na política estadunidense e mundial. 

A esmagadora vitória de Trump no meio rural, industrial, nas camadas menos escolarizadas, e mesmo entre as chamadas minorias sociais, levando em consideração o conjunto da situação mundial, no entanto, força com que ponderemos os resultados parciais destas eleições de outra maneira. Antes de qualquer outra consideração, é preciso ressaltar com ênfase de que o pleito Trump x Biden não se trata da tradução imediata da luta de classes no interior da sociedade estadunidense, nem muito menos mundial. Não se trata de um representante da esquerda contra a direita, dos ricos contra os pobres ou qualquer outra coisa do gênero – o que também explica a instabilidade política e o resultado muito apertado. Há, no entanto, algum conflito expresso nas eleições, que com certeza se trata de uma das mais acirradas e tensas das últimas décadas. 

Há em curso uma inflexão mundial extremista e radical dos setores mais terroristas e virulentos das classes dominantes mundiais, embalando e arrastando a insatisfação e a vontade política de transformação social de contingentes imensos das classes trabalhadoras para seu projeto de fascistização, beligerância aberta, e retrocesso civilizatório em geral – desemprego, desalento em relação ao amparo social (assistência social, previdência, saúde pública, educação e segurança substantiva). 

Impossível seria analisar o desfecho eleitoral sem situá-la no interior de um movimento global muito mais complexo ainda em desenvolvimento, que aprofunda ou mantém suas tendências justamente com a concretização de uma vitória mais ou menos radical. 

A vitória do Brexit, o processo de destruição da constituição de 1988 [1] contido no golpe brasileiro que tem sua consequência na eleição de Bolsonaro, as expressivas votações de partidos de extrema-direita na Europa continental [2], a onda de realinhamento regional dos governos americanos à política ianque [3], e a própria vitória de Trump em 2016 são evidências inescapáveis para tal situação. Trump não é nenhuma aberração, mas um produto muito bem acabado de um estágio atual do desenvolvimento da luta de classes que produz e reproduz reflexos da inflexão das classes dominantes à extrema-direita a nível mundial. 

Entendimentos mais sofisticados para as origens de tal ofensiva, tão inabilmente e dificultosamente combatida em uma perspectiva verdadeiramente de esquerda[4] a nível global, ainda devem ser melhor construídos pela reflexão crítica e a atuação incansável dos povos em luta. O fato é que há ainda fôlego e lenha a se queimar na locomotiva da radicalização à direita o suficiente para embalar enormes barbaridades, e Biden dificilmente poderia coesionar ou embalar um enfrentamento até o fim e o fundo deste problema, de maneira a efetivamente vencer as eleições com uma margem esmagadora e calcinante.

A origem desta limitação é o conteúdo político da campanha de Biden, nas raízes de sua proposição. Mesmo os mais reacionários e conservadores comentaristas brasileiros não conseguem diferenciar Biden e Trump para além de suas roupagens aparentes. Esta é a motivação determinante para o voto tão apertado e a escolha tão dividida da sociedade estadunidense, razão da frustração da mídia hegemônica e demonstração da fragilidade política do discurso da moderação. O representante democrata não poderia ir além dos próprios freios que possui em sua origem completamente rendida ao Pentágono, ao complexo industrial-militar ianque, à Wall Street, e todo um universo de coalizões monopolistas e condicionadas ao mesmo desenvolvimento econômico desastroso que motiva – grosso modo – a crise estadunidense e do Capital em geral. 

Num páreo entre: uma cópia pasteurizada que apresenta o passado da gestão Obama como objetivo a ser alcançado – que levou ao descontentamento político, desemprego e  pauperização, além da própria eleição de Trump -; e o agente que apresenta uma proposta dinâmica, “verdadeiramente nova”, ofensiva, –  a escolha da massa se encontra de tal forma dividida justamente porque o conteúdo real e substantivo da decisão está muito próximo, com nuances de forma.

No interior do partido democrata a única força que poderia guardar capacidade política para dar vazão a um enfrentamento mais aberto e mais competitivo contra Trump era Bernie Sanders. O candidato, no entanto, cometeu um terrível erro ao se retirar das eleições primárias sem levar até o fim – até a convenção eleitoral e além – o debate mais avançado e a denúncia da nefasta realidade social estadunidense e mundial. Mesmo que perdesse a possibilidade de ser candidato, o papel politizante e dinamizador de sua candidatura, que embalou um verdadeiro movimento ao seu redor, muito mais potente e mais abrangente que ele mesmo ou o próprio partido decrépito, poderia dar mais condições de combate à política fascistizante colocada em marcha, especialmente para além do pleito. Ao fim e ao cabo, escolheu-se por colocar em choque eleitoral duas pílulas para um mesmo remédio envolvidas em diferentes movimentos políticos, e o conjunto do debate político no tecido da sociedade ficou limitado aos consensos  do grande capital.

Isso não significa que uma vitória de Trump seria melhor que uma de Biden por fazer aflorar ódio de classe, pelo contrário. O cenário de confusão mundial causado por uma tomada de caminho desviada na política ianque, divergindo do caminho do discurso extremado, interessa muito mais que o aceleracionismo de Trump às classes trabalhadoras. Isto porque os desafios de organização e desenvolvimento de condições políticas para uma verdadeira alternativa democrática e de dignidade para as classes trabalhadoras norte-americanas e mundiais fica muito mais agredido por uma vitória de Trump que de Biden, em especial pelas posições fratricidas, terroristas e chauvinistas que a vitória de Trump anima. 

Uma vitória de Trump é uma vitória da Ku Klux Klan, é uma vitória do neo-nazismo, e do conservadorismo mundial, aprofundamento desta inércia de radicalização à direita que piora e põe em risco todos os lutadores sociais e os povos em luta do mundo, nem tanto pela presença militar imediata estadunidense – porque isso acontecerá e correrá em desenvolvimento independentemente do vencedor do pleito -, mas pelo saldo político final das eleições em cada rincão do mundo ocidental, em especial, e da totalidade da humanidade. 

Isto não significa que um governo democrata será um paraíso da luta social e que abrirá caminho para a construção de um bloco de forças sociais capaz de desorganizar o domínio de Wall Street e dos monopólios em geral sobre o país e a política mundial – Biden continua comprometido com o interesse destes setores sobre o interesse geral dos trabalhadores e dos povos do mundo, apenas não anima abertamente a insurgência fascistizante. 

Uma vitória clara ainda não está consumada, estamos vendo desenrolar uma tensão mal resolvida no seio da sociedade estadunidense com uma vitória apertadíssima de um partido democrata indiferente e mortificado, em uma tensão escalonada entre a extrema direita e os sentidos de uma suposta pacificação social pelo alto com uma nova roupagem moderada. Rompantes de convulsão social e intensificação da atividade de massas podem embaralhar a política nacional, já embrulhada entre escolhas concretas frágeis para aliviar tensões sociais. Um governo democrata que não abrirá caminho para resolver problemas como o desemprego, os baixíssimos salários, o extermínio resultado da política de dominação racista, a miséria e a falta de um sistema de saúde pública são todos elementos para a crise política que tende a seguir. Nem Pensilvânia, Michigan ou Wisconsin dando a vitória a Biden darão conta de reverter a maré que continua a quebrar as ondas na praia do inimigo que está para além de Trump. A vitória magra significa, ainda mais com as possibilidades de judicialização e quebra-quebra generalizado em relação aos resultados, terreno fértil para um contínuo desgaste do consenso político geral e da legitimidade do processo. Tanto o conteúdo político como a forma de organização das eleições ficam, de uma forma ou de outra, fragilizados.

Para aqueles que perderam algumas horas de sono vendo o que a mídia tradicional chamará de “grande surpresa pela vitória da aberração” ou de “grande alívio pela vitória inesperadamente apertada da razão contra a loucura”, grandes frustrações não cabem. A verdadeira esperança na política estadunidense está nas ruas das cidades, nas fábricas e no cinturões agrícolas lutando por dignidade de maneira fragmentada, dispersa, e com pouca projeção nacional programática. Mesmo o potente protesto negro que segue tomando as ruas e tem sido uma infantaria invencível no interior da campanha de Biden (utilizada de modo oportunista, inclusive), está ainda por produzir uma ossatura ideológica e organizativa mais convencidamente nacional e propositiva.

Com o perdão e o risco de poder escrever previsões e análises tão “à quente”, pode-se acreditar que a mídia e as frações das classes dominantes menos compassadas com os ritmos atuais irão querer imputar sobre o todo da sociedade ou uma certa frustração generalizada com este resultado eleitoral pela vitória da loucura, ou uma euforia acelerada com a vitória de Biden, articulada a uma profunda ofensiva para a sua garantia legal junto aos tribunais. Fundamentalmente a nós, estrangeiros, sentir uma vitória de Trump com tremenda frustração, ou uma vitória de Biden com euforia diz mais sobre nossa falta de referenciais, líderes e oxigenação política, que da situação estadunidense – que na verdade incorre em problemas semelhantes. Mensagens de esperança talvez não bastem, e mesmo não caibam, pois nesta arena ela simplesmente parecia não querer aparecer. Quem sabe uma mensagem de paciência, pois a história sempre caminha, e os povos encontram seus caminhos para libertação.

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[1] Constituição que institucionalizou o regime ditatorial brasileiros nos marcos de uma democracia de cooptação tutelada pelas forças armadas com parcas conquistas parciais, mesmo assim cercada e fuzilada pelos interesses dominantes.

[2] Com raras exceções em Portugal e Espanha.

[3] O que engrandece ainda mais a resistência cubana, venezuelana, as recentes vitórias das classes trabalhadoras no Chile e os primeiros passos para a reversão do golpe na Bolívia.

[4] Entendendo por “esquerda” todos aqueles movimentos que de maneira mais ou menos coerente, mais ou menos consequente, e mais ou menos aparente apontam para a construção do socialismo.

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