Somos mais de 70%, mas não estamos do mesmo lado.

Somos mais de 70%, mas não estamos do mesmo lado.

Por: Luca Pilotto

Eu sou otimista em relação ao futuro do socialismo no Brasil. Já temos uma classe operária numerosa, com nível de consciência elevado. O que falta é organizá-la. Organizada a classe operária será uma força invencível, que poderá levar o país ao socialismo.
(Luiz Carlos Prestes – Lutas e Autocríticas, 1982, p. 216)

Nos últimos dias circula nas redes e jornais o “Manifesto estamos juntos” em defesa da democracia. Um manifesto, que se propõe a não só unir todos os campos em defesa da democracia, como transpassar as redes e avançar para um movimento de frente ampla contra a ascensão fascista. O manifesto, assinado por grandes personalidades da esquerda, como Guilherme Boulos, Glauber Braga, Ivan Valente e outros, é também assinado por Luciano Huck, FHC, e políticos da direita tradicional (supostamente democrática). É de fato uma “frente que dói de tão ampla”, e uma iniciativa composta por também por grandes companheiros que devemos respeito.

Mas, nós, militantes comprometidos com o destino do nosso povo e, que, com profunda preocupação frente aos anseios golpistas do fascista Bolsonaro, nos posicionamos e mobilizamos, devemos avaliar com calma as iniciativas. Antes de tudo, jamais abrir mão das condições concretas de disputa política que existem, e do resultado concreto que elas podem gerar, sem idealismo algum. Um manifesto como este, é uma proposta de frente ampla, necessariamente contraposta a uma frente de esquerda. 

É preciso, portanto, analisar a realidade brasileira para construir a melhor saída para este momento tão difícil. O capitalismo brasileiro é dependente e associado ao imperialismo. E o nosso Estado é permeado profundamente pelo fascismo. Mas isso não vem de hoje, é anterior ao governo  Bolsonaro. E o que significa? Significa que no nosso país, o bloco de poder dominante é composto pelo latifúndio, pelos monopólios e pelo imperialismo, principalmente estadunidense. Este último, a fração dominante que o dirige e integra, subordinando os monopólios nacionais e o latifúndio.

Numa suposta “frente ampla” pela democracia, ou contra o fascismo, composta por setores da direita tradicional, teríamos (e, nesse caso, temos) portanto, representantes de frações dominantes do nosso país, que estão em desacordo com a política de genocídio do governo Bolsonaro. Mas esse  desacordo é verdadeiro ou só aparente? 

A direita tradicional, boa parte signatária do manifesto #Juntos, em momento algum se preocupou com os elementos fascistas e autoritários presentes no estado brasileiro. Algumas de suas figuras mais proeminentes  inclusive o aprofundaram, como é o caso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Essa mesma direita tradicional, tampouco discorda da política econômica genocida e fascista do governo Bolsonaro, formulada e dirigida pelo imperialismo estadunidense, que violentamente tenta “pôr ordem em seu pátio traseiro”. Não se opõe também, a que jovens brasileiros se tornem bucha de canhão e morram em uma possível guerra contra a Venezuela. Por não terem desacordo com estes pontos essenciais, não tem interesse real na derrubada de Bolsonaro.

Luiz Carlos Prestes, profundo conhecedor dessa direita tradicional, em plena ditadura civil-militar, apontou os caminhos possíveis para derrotar de fato fascismo em nosso país. Prestes se opôs a uma frente ampla contra a ditadura, e o fez com o intento de  derrotar a ditadura e o fascismo pela raiz, e não só de forma aparente. Prestes e nós, homens e mulheres de esquerda, nos opomos ao fascismo em defesa da vida, contra a exploração dos trabalhadores e trabalhadoras, o genocídio da população negra, indígena e camponesa, em defesa da paz mundial e em nosso continente, em defesa das liberdades democráticas, e contra toda forma de opressão. Para que seja possível, tanto hoje como no futuro, trilharmos os caminhos da igualdade e de uma democracia em forma e conteúdo, não apenas formalmente. 

É só uma frente que defenda estes pontos mínimos que nos interessa, só isso representa de fato a defesa da democracia. E quem se opõe a isso? É claro, Bolsonaro declaradamente se opõe. Mas o que diriam também os latifundiários, que envenenam água de camponeses, desmatam as florestas e massacram  camponeses, quilombolas e indígenas? Ou os monopólios, nacionais e estrangeiros, que defendem o fim da quarentena (para os outros, não para eles), ao custo da saúde e da vida dos trabalhadores? Os grandes monopólios que querem o fim do SUS, que são responsáveis pelos crimes em  Brumadinho e Mariana, financiam máfias sindicais, o tráfico e as milícias? E, ainda por cima, concorda com isso o imperialismo yankee, que não permite nem mais um respiro de autonomia ou desobediência na América Latina, que promove embargos criminosos e genocidas nos países desalinhados a eles e tem uma agenda de fome, miséria e desemprego para a periferia do capitalismo? A política de Bolsonaro é a radicalização aberta do programa do bloco de poder que dirige o Brasil. Por mais que existam fissuras, discordâncias e brigas internas, quem é dominante neste bloco é o imperialismo, e nenhum dos representantes da direita tradicional ousará defender o que nós defendemos, em detrimento dos interesses do capital financeiro internacional. 

O “Manifesto estamos juntos” nos apresenta o compromisso programático destes representantes cretinos. E parte da esquerda, genuinamente comprometida com a derrubada de Bolsonaro,  aceita-o. Não é coincidência que esteja no Manifesto a defesa da lei e da ordem. Nem é descuido que a “identidade nacional” esteja ali representada como una: entre aqueles que fazem  juras de amor a Miami e criminalizam a umbanda, e os trabalhadores que pariram o samba, o axé, o maracatu, a capoeira, o folclore e as religiões afro-brasileiras. O Manifesto, assim como uma frente ampla, expressa o programa da direita tradicional, submissa aos interesses dos Estados Unidos, e não toca em nenhum dos problemas concretos do povo brasileiro. Caso se concretize a queda de Bolsonaro, sem hegemonia da esquerda sob direção de uma frente, as condições de vida do nosso povo não irão melhorar. Um governo pseudoliberal como de FHC não é mais possível hoje, e o PSDB de 1990 e de 2020 também não é mais o mesmo. Pode ser genuíno o descontentamento dessa direita com o governo, com as atrocidades e grosserias desse presidente, mas não há nenhum compromisso com a democracia, com a vida e com o nosso futuro. Se os interesses dos EUA ou do bloco de poder forem colocados em risco com a ascensão de mobilizações que defendam uma democracia radical, ou feitos semelhantes aos de Minneapolis, os “companheiros” que assinam #juntos esse manifesto rapidamente defenderão a lei e a ordem da exploração e do genocídio. Se for preciso, seja numa reconciliação com Bolsonaro, ou após um golpe de fato, entregarão de bandeja para a repressão muitos dos militantes de esquerda que estão ao seu lado neste manifesto.

A única saída é à esquerda. Por isso, é urgente uma frente de esquerda, que congregue todos os setores comprometidos contra o latifúndio, o imperialismo e os monopólios. A única forma de conter o avanço do fascismo é organizando o povo em defesa do emprego, contra a fome e a miséria. A tarefa de organizar uma frente como esta, não se trata de pedir o RG e um atestado de antecedentes políticos, mas sim, de construir uma  unidade em torno do que de fato nos interessa. Se os setores da direita que assinam essa carta assumirem uma postura antifascista, contra a política do FMI e dos Estados Unidos para a América Latina e contra tudo que essencialmente os caracterizou historicamente como direita, são mais do que bem vindos.

 Hoje, uma frente de esquerda anti-monopolista, anti-latifundiária e anti-imperialista já parece menos distante que há alguns meses, mas é necessário avançar. Começar através da construção da unidade de ação entre a esquerda, aprofundando cada vez mais nossas concordâncias e, assim, amadurecendo a unidade. Nesse sentido, cabe principalmente aos comunistas serem “os campeões da unidade”, como dizia o velho Prestes. E, por último, é absolutamente necessário que essa frente não seja sectária! Se eventualmente alguns dos partidos e figuras públicas da direita signatários deste manifesto se identificarem com ações e pautas, serão bem vindos. É possível e necessário que outros manifestos e ações de unidade sejam escritos. Nesses casos, devemos “tampar o nariz” e aceitar que assinem e subscrevam as figuras com os mais diferentes históricos e tendências políticas, desde que sob hegemonia da esquerda e de um programa popular.

Somos mais de 70%, mas não estamos todos do mesmo lado. Nossa força não consiste na maioria abstrata, mas no quanto conseguirmos mobilizar a sociedade na defesa concreta dos interesses do nosso povo.

Luca Pilotto, militante da JCA e do PCLCP

Um comentário em “Somos mais de 70%, mas não estamos do mesmo lado.

  1. Olá Lucas, bom texto, muito bem articulado. Compartilho da tua posição.
    Márcio R. Silveira (UFSC)

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